(A história foi-me contada muitos anos depois e não o foi por nenhum dos protagonistas. Assim, pode acontecer que alguns dos pormenores não estejam correctos)
O meu avô plantou-se desde manhãzinha à porta do local onde estava instalada a mesa de voto. Quando chegaram os membros da Mesa encararam-no com azedume e proibiram-no de permanecer nas instalações após ter votado. Nada disso o incomodou. Rodeado de alguns amigos, o velho republicano não arredou pé da porta durante todo o dia enquanto era informado das várias diligências em relação aos alertas junto dos eleitores mais esquecidos. Cada conhecido que entrava era cumprimentado e a maioria assegurava-lhe, baixinho, que seria mais um voto garantido no General.
Pouco antes da votação encerrar o meu avô estava eufórico - tudo indicava que "os republicanos", como ele dizia, iriam ter uma vitória retumbante, muito para além do esperado.
A contagem dos votos foi feita à porta fechada e só alguns responsáveis locais da Administração Pública foram admitidos a presenciá-la. Pressentia-se a hipótese de fraude mas a diferença entre os dois candidatos parecia tão grande que qualquer tentativa de trapaça eleitoral seria demasiado escandalosa - julgavam quase todos.
Finalmente os resultados foram anunciados. Sem qualquer pingo de vergonha, o candidato da Situação foi declarado vencedor por mais de 80% dos votos.
Houve protestos, dizem-me que até algumas gargalhadas. O meu avô terá ficado tão espantado que não esboçou qualquer reacção durante 1 ou 2 minutos. Mas quando os sicários do regime (muitos transitaram, tranquilamente, a partir de 1974, para o actual) se preparavam para abandonar o local, o meu avô não resistiu e invectivou-os o mais que pôde. Assustados, os situacionistas começaram a correr rua abaixo enquanto o velho republicano era acalmado pelos amigos. Mas não chegou - a Guarda, prontamente chamada pelos serventes da União Nacional, deu-lhe voz de prisão ali mesmo. ###
Telefonaram para o meu pai que era advogado no Porto - «Venha depressa, o seu pai foi preso! Perdeu a cabeça quando viu que tinham vigarizado os resultados do General.»
O meu pai não gostou: «De que é que estavam à espera? Então não viram que foi assim pelo país todo?». Meteu-se no carro e fez o mais depressa que podia as 3 horas que distavam aqueles cento e poucos quilómetros.
Mal chegado, foi directo para a esquadra e exigiu a libertação de seu pai. O Chefe da Guarda disse-lhe que não podia ser - «Tenho ordens para o deixar aqui até amanhã ao almoço.»
Foi a vez do meu pai azedar - «Ordens de quem? Do seu superior ou da União Nacional? Não o pode ter aqui, ninguém apresentou queixa.» O diálogo foi aquecendo.
Algum tempo mais tarde o meu avô ouviu a porta da cela a abrir-se. Sorriu, aliviado, quando viu o meu pai - «É para ir embora?», perguntou confiante. «Não», respondeu o meu pai - «achei que ia ficar aqui muito sozinho e resolvi fazer-lhe companhia».
E foi assim que no dia em que o país se enxovalhou numa imunda trapaça eleitoral, o meu avô e o meu pai passaram a noite juntos na prisão.
O país assim continuou, amorfo, medroso, abafado, bovino. Quando os assassinos do regime mataram o General Sem Medo o meu avô já não era vivo. O meu pai ainda viveu o suficiente para ver quase todos os defeitos da antiga Situação transportarem-se, incólumes, para o actual regime. O rebanho, esse, é sempre o mesmo.