Não vou comentar a essência desta posta de Pedro Arroja, a sua sanha anti-pombalina feita de espírito de "viradeira", nem sequer as saudades emotivas, que se pressentem, dos tempos livres e porventura, até, liberais do Senhor D. João V (O Magnânimo!). O que me preocupa é outra coisa. A dado passo, na sua interpretação histórica-opinativa, Pedro Arroja diz: «Foi ele [o tenebroso e sinistro Pombal] ainda que deu respeitabilidade a essa grande fraude intelectual, castradora de toda a actividade cívica, que é o Direito Administrativo.»
Fiquei preocupado. Não pela classificação desse subsistema do direito como «fraude intelectual» - todos nós, supostamente, somos livres de assim nomear vários domínios do conhecimento naturalmente incapazes de estabelecer certezas e premissas exactas, como, por exemplo, o direito, a sociologia, a psicologia e a economia. O que se passa é que alguns fazem-no com mais arrebatamento do que a maioria.
Mas o que me deixou perplexo e desassossegado foi o facto de que, ao tempo de Pombal, o Direito Administrativo não existia. Pelo contrário. O Direito Administrativo, em Portugal e em todo o lado, é um produto directo e consequente da revolução liberal. Liberal, disse bem. Pode-se mesmo afirmar que o Direito Administrativo, sob o ponto de vista histórico, é um filho querido do liberalismo novecentista.
Antes da eclosão das várias revoluções liberais na Europa continental nos finais do séc. XVIII e princípios do séc. XIX (excluindo, portanto, a alegre Inglaterra e os emergentes EUA) o status quo consistia no regime absolutista. Este, entre muitos outros aspectos, caracterizava-se por uma feroz centralização administrativa, jurídica e política. No que toca à Administração, esta (que se deve denominar de Régia e não de Pública pela predominância do elemento pessoal e exclusão da dimensão institucional), representava o próprio monarca, era a sua longa manus, i.e. o mais humilde cobrador de impostos, o ouvidor ou o corregedor, por exemplo, no exercício das suas funções eram o próprio Rei. Ora isto colocava um problema jurídico: as leis que o Rei elaborava ( na fase final do Absolutismo eram cerca de 8 tipos diferentes) só se aplicavam aos outros, nunca a si mesmo - nem à sua Administração. O Rei fazia as leis mas não se submetia a elas: nem ele, nem a sua família directa, nem a sua Administração. A Administração Régia durante o absolutismo (antes, durante e depois de Pombal, convenhamos) não estava sujeita às leis, ao direito nem a qualquer outra determinação jurídica que não fossem as ordens e instruções hierarquicamente estabelecidas. A Administração Régia era um corpo estranho ao direito e, para além disso, as suas acções eram juridicamente insindicáveis.
O quadro não se alterou até que surgiu o... liberalismo. Com o princípio da separação de poderes tentou-se travar o poder absoluto - na expressão de Montesquieu «il faut ... que le pouvoir arrête le pouvoir...». Depois submeteu-se o poder executivo (administrativo) do Estado à lei - estava criada uma das lógicas basilares do Estado de Direito, o princípio da legalidade.
É daqui que nasce o Direito Administrativo: da necessidade liberal de controlar o poder executivo do Estado que não conhecia qualquer freio no regime anterior. O Direito Administrativo, agora, pelos vistos, tido como «fraude», foi gerado no espírito da mudança liberal dos primórdios do séc. XIX por liberais que queriam submeter o Estado à prossecução de funções tipicamente liberais.
O Direito Administrativo não é o direito do Estado ou da Administração - era, e ainda o é, a área do Direito que diz ao poder executivo aquilo que este pode, não pode e deve fazer. Que o tem de fiscalizar e controlar. Que define a licitude dos comportamentos do Estado. Que traça os seus limites. Que reconhece os direitos e as garantias dos cidadãos (outra noção liberal, coeva e gémea) e lhes concede os meios procedimentais e judiciais de reagir contra os desmandos dos entes públicos.
O Direito Administrativo, se for convenientemente entendido, designadamente em atenção às suas raízes liberais, pode e deve ser o melhor amigo da liberdade. Infelizmente, muitas vezes não o é. Quer por culpa dos incorrigíveis cultores do estatismo quer, ainda, pelos que julgando combatê-lo pouco mais fazem do que justificar as suas soluções mais repugnantemente intervencionistas.