6.4.04

MEU CARO GABRIEL,



O problema da Constituição Europeia, a mim, tira-me também «do sério», como acontece quanto te falam em certos termos dos conceitos de «Nação» e de «Estado».
Acontece que muitos dos «tratadistas» e políticos que se pronunciam sobre a Constituição Europeia o fazem, invariavelmente, possuídos de uma ignorância enciclopédica ou, pelo menos, de uma má fé ilimitada.

Desde logo, porque ninguém pode ignorar que, desde os primórdios, a construção comunitária visou a federação. Monnet disse-o expressamente nas antevésperas da assinatura do Tratado de Paris de 1951, que criou a Comunidade Económica do Carvão e do Aço, numa carta que reproduziu nas suas «Mémoires»: «Pour la mise en commun de productions de base et l’institution d’une Haute Autorité nouvelle, dont les décisions lieront la France, l’Allemagne et les pays qui y adhéreront, cette proposition réalisera les premières assisses concrètes d’une fédération européenne indispensable à la préservation de la paix» (Jean Monnet, Mémoires, Fayard, 1976, p. 353).
Apesar dos reveses que De Gaulle trouxe ao processo de integração comunitária, devido a um nacionalismo chauvinista e exacerbado que ele incorporou, tão próprio do sentimento pequeno-burguês francês, e das cautelas da Grã-Bretanha que, embora cuidadosa, não deixou de entrar no comboio comunitário em 1972, já ele estava em bom andamento para destino que todos conheciam, a verdade é que foram assinados e ratificados importantes Tratados com fortes componentes federalistas, a saber (e pelo menos) o Acto Único Europeu (1985) e o Tratado da União Europeia (1992). Aceitou-se, com Jacques Delors, o pleno cumprimento da etapa do Mercado Comum, para o que foram abolidas as fronteiras terrestres entre os Estados-membros, foi criado o Sistema Monetário Europeu (SME) em 1979, que só poderia resultar –caso funcionasse, como funcionou – numa União Económica e Monetária (UEM), decidida em Maastricht e que originou o nosso estimável Euro.

Saber o que é o federalismo europeu é já outro assunto. Em rigor, nunca foi claro esse conceito. Nem na opinião política, muito menos entre os próprios federalistas. Logo a seguir a 1945, estes últimos reuniram-se em Montreux (1947) e, numa assembleia de âmbito mais alargado, no Congresso de Haia (1948) para debaterem o assunto. Já nessa altura, os federalistas não se entendiam: Altiero Spinelli, antigo comunista em vias de regeneração, propunha um federalismo super-estadual, criador de uma autoridade que se sobrepusesse aos Estados-membros e de um exército único europeu; em contrapartida, Denis de Rougemont pugnava por um federalismo regionalista, onde o poder do centro político fosse quase inexistente, diluindo-se o poder dos Estados criados no oitocentismo europeu por entidades regionais de base próxima das diversidades populacionais, dos seus interesses e das suas especificidades.

Monnet, o verdadeiro criador da Europa comunitária, ciente do romantismo dos federalistas que propunham um acto fundacional constituinte (a tal «Constituição Europeia») para a «Nova Europa», seguiu outro caminho. Durante décadas foi odiado pelos federalistas! Spinelli rogou-lhe pragas eternas e responsabilizou-o pelo “insucesso” do processo. Chegou a afirmar que «Monnet hás the great merit of having built Europe and the great responsability to have built it badly» (Michael Burgess, Federalism and European Union, Routledge, 1990, pp. 57 e 58). Ele optou por um método curioso, de que não foi verdadeiramente o criador, que usualmente se chama «funcionalismo». No essencial, este método consiste numa aproximação sectorial das soberanias e dos Estados. Step by step. Se as coisas correrem bem, isto é, se forem visíveis os efeitos úteis do processo, continua-se. Caso contrário caminha-se mais devagar ou, mesmo até, conclui-se o percurso conjunto.
Ora este procedimento só é exequível se obtiver a adesão, ainda que factual e não pronunciada, das pessoas, das suas organizações e dos seus interesses. Neste contexto, se tem feito a Europa comunitária: de avanços e recuos, reflexos de sucessos e fracassos, de certezas e de hesitações, como é próprio de tudo quanto é especificamente humano. A actuação de Monnet, que muitos julgam convictamente socialista, foi genuinamente ordinalista, profundamente hayekiana no sentido de que a integração europeia não poderia resultar de actos de vontade das elites e dos governos, mas que teria de constituir-se em ordem social de adesão espontânea. Foi, portanto, um processo genuinamente liberal.
Com desvios socialistas? Ah!, sem dúvida. Resultado, desde logo, da (in)evolução do pensamento político dominante, com os governos socialistas europeus dos anos setenta e, em parte, da década de oitenta. Mas isso, meu caro, faz igualmente parte da natureza política humana e o liberalismo, ainda que não se agrade, não o pode enjeitar.
Em conclusão: embora de pendor fortemente federal, não existe ainda um modelo político comunitário determinado e fechado, porque é da essência da sua natureza, do ordinalismo de Monnet, que assim tenha sido, seja e continue a ser.

Outra questão é a da Constituição para a Europa. Ela é, mais do que nunca, urgentíssima. O alargamento que se aproxima e o aprofundamento dos últimos anos, exigiria que ela já existisse há muito tempo. Mas falamos, obviamente, não na declaração constitucional do Sr. Valéry Giscard d’Éstaing, fruto de um governo de directório franco-alemão cada vez mais patente, verdadeira ameaça ao processo liberal comunitário, mas de uma carta constitucional onde as regras de governo e os princípios estruturantes fundamentais sejam claríssimos. Há que não esquecer que, nas suas origens, as Constituições foram autênticas «cartas de privilégio» das nações que as declaravam ou recebiam, porque, assim, ficavam menos expostas ao poder despótico dos governantes. Hayek refere-o sem dúvidas na «The Constitution of Liberty»: «A Constituição foi concebida como uma protecção do povo contra qualquer acção arbitrária tanto por parte do Legislativo como dos outros organismos do governo».
Ora, dizer-se que a Constituição material da União Europeia é mais do que suficiente para assegurar os valores liberais da limitação do poder, é um absurdo. Na verdade, são tantas as regras e normas dos Tratados e actos avulsos comunitários, as praxes e os usos já com valor constitucional, que mesmo o mais experiente jurista se presta aos equívocos mais elementares. Imagine-se, agora, o cidadão comum…
Por outro lado, é mais do que tempo de se definirem com clareza, tendo naturalmente em consideração o acervo existente, e de uma vez por todas, as regras do poder da União. Seja ele qual for, caminhe para onde caminhar. Necessariamente, mantendo salvaguardada a natureza ordinalista original do processo, e salvaguardando os instrumentos de ratificação parlamentar nacional, que deverão ser precedidos de referendos populares. Em conclusão: sem Constituição formal europeia a tendência para o uso arbitrário e desregrado do poder comunitário irá agravar-se. E isso um liberal jamais poderá aceitar.

Recebe um abraço amigo (e desculpa a extensão da prosa),