4.7.04

O CARMO E A TRINDADE

Meu Caro CAA,

Sendo embora difícil, devemos olhar para a política de forma objectiva e fria. Se estivermos envolvidos, dificilmente compreenderemos tudo o que se passa à nossa volta e, sobretudo, encontraremos sempre explicações transcendentes para o que nos sucede e para o que vemos suceder.
Eu não digo que o Dr. Sampaio não dissolva a Assembleia da República. Pelo contrário, penso até que ele está bem mais perto agora de o fazer, do que há pouco mais de uma semana, quando toda esta história rebentou. Até julgo mesmo que o anunciará com ar solene, na próxima quinta-feira ao serão. Com aquele brilho próprio que faz lembrar os locutores de continuidade da BBC, ao começo do jantar. Faz bem. Pelo menos previne a digestão. Mas faz mal do ponto de vista político, porque perdeu o tempo em que o poderia ter anunciado serenamente e com uma legitimidade de que já não dispõe.

O que eu afirmo é que, em política, uma semana é muito tempo. Apesar do Senhor Presidente da República dispor de todo o tempo constitucional para tomar as decisões que a discricionariedade constitucional lhe permite, ele - se verdadeiramente queria decidir - deveria ter assumido, ab initio, a condução deste processo. Chamava, nos termos da Constituição, os partidos com assento parlamentar, reunia o Conselho de Estado, e decidia.
O que ele fez, meu caro CAA, foi expor-nos a um desfile de marqueses, de reformados políticos sem qualquer legitimidade democrática, para tomar uma decisão. Que eu me tenha apercebido, Portugal não é ainda uma república aristocrática, para que meia-dúzia de figuretas possam dispor do futuro governo do país. Porque hão-de os Senhores João Salgueiro, Santos Silva (não, é o banqueiro e não o que conhecemos), Lurdes Pintasilgo, Pinto Balsemão, Gomes Canotilho, Rui Machete, opinar sobre o futuro do governo? Quem os legitimou para, aqui e agora, contribuírem para a formação da decisão do Sr. Presidente? Não os julgo deputados nem, na sua maioria, Conselheiros de Estado. Julgo, igualmente, que não temos ainda nenhuma câmara alta no parlamento, um Senado ou Câmara dos Lordes de que eles façam parte. Quando Sampaio ouvir, a meio da próxima semana, os partidos políticos, a sua opção estará provavelmente escolhida. Com base em quê e em quem?

Sobre a subsistência da actual maioria parlamentar, eu não seria tão categórico a afirmar como tu que «o projecto falhou» e que «está em causa o país». Porque, no que toca à última asserção, lembra-me logo a necessidade de um patriota qualquer para nos salvar. Ora, como bem sabes, este país está para ser salvo, pelo menos, desde 1128, quando o Infante Afonso Henriques, na batalha de S. Mamede, expulsou a mãezinha e o perverso Peres de Trava do governo da terra portugalense para salvar quem por lá andava. Foi o que se viu. De lá para cá, ambiciona-se desalmadamente a salvação e procura-se um salvador. Conheces algum disponível? Eu, que a esse respeito há muito não me iludo, não estou a ver nenhum.
Quanto à falência do projecto, sem dúvida muito personalizado na figura do José Barroso, se ele era para quatro anos, então talvez não seja mau avaliá-lo no fim desse período. A questão é esta: se, de facto, os partidos do governo, que são quem tem legitimidade constitucional, não convencerem no ano e meio de mandato que lhes falta cumprir, levarão um banho monumental nas próximas eleições. A oposição só poderá ficar radiante. A não ser que ela própria receie outro cenário qualquer? Julgo que não será um golpe de Estado, como teme a ainda Ministra das Finanças, para quem, ao que parece, regressámos à Iª República. A não ser que eu esteja a ver mal as coisas e os «homens da golpada» que referes existam mesmo. Aí, é de recear o pior.

Sobre o valor das pessoas na política ele é, sem dúvida, nuclear. Os aspectos volitivo emocional são igualmente muito importantes. Mas, os órgãos de soberania - que não devem ser exactamente focos de luta partidária - não podem ser geridos por simpatias ou antipatias pessoais. Não lhes pagamos, julgo eu, para isso. Vê esta hipótese prática: imagine-se, como julgo que sucederá, que o Dr. Sampaio dissolve a Assembleia da República na próxima semana. E que, no meio de um arrazoado de argumentos sensatos e patrióticos, todos nós nos apercebemos que o que esteve verdadeiramente em causa foi o Dr. Lopes. Ou antes, a repugnância (política) pelo Dr. Santana. As reservas sobre o autarca da Praça do Município. O asco ao populista da Figueira. O desdém pelo ex-namorado da Cinha Jardim. Todo este nojo aristocrático, significará que pelo menos enquanto Sampaio for presidente, o Dr. Santana será expurgado da governabilidade nacional, qual pústula fedorenta e nauseabunda. E se o PSD o confirmar em congresso? E se ele for a eleições e as ganhar? O Dr. Sampaio já o engole ou demite-se com receio de lhe apertar a mão? Em alternativa, recebê-lo-á com má cara se ele for o líder da oposição? Francamente!

Se o Dr. Sampaio desejava eleições antecipadas por ter ficado desagradado com a atitude do José Barroso e a situação do país, que o tivesse dito há uma semana. De lá para cá, o país ficou na mesma (suspeito que até mais feliz por se ver livre de certos ministros), e o Carmo e a Trindade ainda estão no mesmo lugar. Agora, só lá vai com argumentos pessoais. E esses desmerecem a função que exerce e são politicamente indiciadores de tiques autocráticos. Que o Dr. Lopes há-de utilizar como ninguém para galvanizar o PSD. Mas esse é já outro capítulo da história...