17.7.04

Tocqueville

A Democracia na América, contrariamente ao que afirma Rui Tavares, não é uma obra menor, quanto mais não seja, pelo impacto que teve e continua a ter, mesmo em quem nunca a leu...

Creio também que Tocqueville dificilmente poderá ser interpretado como estando a elogiar a "escravização igualitária". Não é, aliás, possível entender Tocqueville se não se tiver em conta que a sua preocupação política fundamental foi tentar compreender de que forma se poderia evitar que a democracia (e os impulsos igualitários que lhe estão associados) acabassem por gerar uma tirania da maioria materializada num despotismo mais ou menos "doce".
Para Tocqueville, a "democracia" é inevitável na exacta medida em que a velha ordem aristocrática não é recuperável, e é a compreensão desse facto que o leva a preocupar-se com os graves perigos que os "instintos democráticos" acarretam. Ler Tocqueville sem previamente o enquadrar nesta tensão entre dois mundos (ou, mais propriamente, entre duas ordens) é, na minha opinião, uma pura perda de tempo.

Isto dito, o post Exame escrito de Rui Tavares contém algumas observações pertinentes, nomeadamente quanto ao carácter efémero da América objecto dos escritos de Tocqueville:

Essa América era uma federação de tal forma flexível que permitiria a secessão de estados. Passado umas décadas, a Guerra Civil (por boas ou más razões) acabou brutalmente com essas ilusões, e provocou no processo umas dez vezes mais de mortos do que o Terror francês. Por coincidência, os neo-conservadores usam Lincoln como um exemplo do presidente que Bush deveria ser (isto até seria divertido se não fosse triste) porque Lincoln não hesitou em desrespeitar a Constituição e a Lei para impôr aquilo que considerava ser o Bem, ou seja, por ter sido o carrasco (mais uma vez, por boas ou más razões) do espírito que Tocqueville descreveu na sua obra.


e também quanto à necessidade de ter alguma cautela face a obras que "proclamam a propensão quase-natural de povos para a servidão ou a liberdade, a eficiência ou a corrupção, a riqueza ou a pobreza", um julgamento que, no entanto, creio que se aplica bem mais a A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, de Max Weber (uma obra pela qual, apesar de liberal, também não tenho especial simpatia), do que a qualquer das obras de Tocqueville.