3.10.04

A CONCORDATA

Num Estado livre, laico e democrático, como é o caso de Portugal, que tem uma lei de liberdade religiosa, a qual garante o livre exercício desse direito, possuiu uma Constituição que de igual forma garante os direitos das comunidades religiosas e dos crentes, e em que o Estado é signatário de diversas convenções internacionais (dos Direitos Humanos, etc.) sobre o mesmo assunto, justificar-se-á assinatura de um Tratado sob a forma de Concordata com a Igreja Católica?
Na minha opinião não.
Nem com a ICAR, nem com qualquer outra confissão religiosa.
No actual contexto, como se explica a sua existência? Porque na elaboração da lei da liberdade religiosa, o governo Guterres, expressamente retirou a ICAR do âmbito daquele lei, relegando o exercício da liberdade religiosa daquela comunidade para uma posterior Concordata.
Havia necessidade de tal diferimento? Não. A lei de liberdade religiosa, exactamente por ser regulamentadora do exercício daquele direito em igualdade de circunstâncias para todas as comunidades, seria por si suficiente e o garante de uma efectiva igualdade e respeito pela liberdade religiosa de todos. Bastaria que na lei fosse indicado que ficava sem efeito e era revogada a antiga Concordata.
Ao diferir-se no tempo e na legislação a regulação de uma particular comunidade está-se a, ou a violar a igualdade de exercício e logo, não há efectiva liberdade religiosa, ou a produzir-se um documento inútil, a Concordata, pois que nada deveria acrescentar de distinto à lei geral.

Analisemos então a Concordata.
Logo na introdução, o Estado vem reconhecer que a Concordata de 1940 contribuiu "de maneira relevante para reforçar os seus laços históricos e para consolidar a actividade da Igreja Católica em Portugal em beneficio dos seus fiéis e da comunidade portuguesa em geral". Parece-me abusiva tal conclusão face ao desempenho histórico das estruturas hierárquicas da Igreja e, sobretudo, irrelevante do ponto de vista do interesse do Estado.
O artigo 3º não é digno de um Estado laico: o que é que interessa e em que é que se materializa o facto de o Estado reconhecer os domingos como "dias festivos"?. Simplesmente deve assegurar que os fieis de todas as comunidades religiosas possam celebrar em liberdade e condignamente os seus dias festivos.
Os artigo 13º e 16º são abusivos e indignos de um Estado laico, na medida em que confere efeitos civis a uma ordem jurídica estranha à do Estado, sem qualquer justificação. Regula ainda efeitos jurídicos que poderão ser em si mesmo contraditórios nas respectivas ordens jurídicas, uma vez que os fundamentos e as condições para o seu exercício tem elementos potencialmente conflituantes.
O artigo 15º é vergonhoso constar num Tratado realizado por um Estado laico e livre, uma vez que tal matéria lhe é não só indiferente como deverá ser completamente alheia.
O artigo 30º é uma limitação inaceitável na livre disposição legislativa do Estado para fixar os seus dias feriados.
Na prática, os restantes artigos podem ser todos reconduzidos ao texto da lei de liberdade religiosa, pelo que se afiguram desnecessários.
A única excepção, com graves efeitos no ordenamento interna da própria Igreja , é o artigo 27º, o qual configura a centralização e monopólio do sistema de percepção de receitas fiscais dos contribuintes católicos numa única entidade, de forma obrigatória, retirando-se a liberdade de escolha aos contribuintes católicos. O Estado também não deveria interferir no ordenamento interno da Igreja, uma vez que se não fosse a Concordata nunca a Conferência Episcopal conseguiria tal desiderato no seu próprio ordenamento jurídico.
É a moeda de troca. Literalmente.

É pois uma Concordata para lamentar ter sido negociada da forma como o foi, com a agravante de o seu conteúdo não respeitar a laicidade do Estado e ter sido, infelizmente, aprovada com o apoio do PS e do PSD, o que inviabilizará a desejável revogação a medio prazo.

Nota: Caro AAA, como podes imaginar, não me revejo na definição de "extrema-esquerda", nem de "anti-católico".
Tambem, a não perder o discurso do ministro dos negócios estrangeiros, um triste, vergonhoso e inacreditável hino ao disparate do revivalismo do mito da portugalidade católica.