26.11.04

POLÍTICA E LIBERALISMO

O meu bom amigo CAA (links não disponíveis) anda politicamente abatido, e tem emitido alguns sinais que me provocam a mais profunda preocupação.
Nos seus últimos três post editados no Blasfémias, CAA disse frases enigmáticas como «já não sei bem onde estou e com quem estou», falou em «homens providenciais» e anunciou que ia assistir a uma conferência do Prof. Cavaco. Mais grave do que tudo isso, são as imagens que acompanham esses post: um suicida (político?) fitando o mar bravio a que visivelmente se pretende atirar, um ameaçador céu nebulado e cinzento, e os «chaimites» de Jaime Neves, em premonitória homenagem ao 25 de Novembro de 1975.
Eu, que sempre achei que os amigos são para as ocasiões, levado a pensar que este estado de nostalgia política de CAA possa ser devido a legítimas dúvidas sobre a natureza de alguns projectos políticos em que se viu ultimamente envolvido, atrevo-me a prestar-lhe uma ajuda desinteressada sob a forma de dez princípios, ou regras que me parecem fundamentais, do liberalismo político, com os quais ele poderá estabelecer as comparações que melhor entender e lhe possam ser eventualmente úteis. A lista que se segue, não se pretende exaustiva, nem dogmática, mas somente pedagógica e terapêutica. Aqui vai.

1. O liberalismo afirma sempre o primado do individual sobre o colectivo. De modo que os discursos políticos que enfatizam a «pátria», a «nação», ou outros agregados sociologicamente redutores, são sempre de pôr um liberal de prevenção e em cuidado.

2. Um liberal defende o desinvestimento público e a redução do papel do Estado na vida social. Um programa político que insista em pontos como a promoção da igualdade social, a redução das injustiças, ou outras intenções igualmente piedosas a cargo do Estado, não é certamente liberal.

3. Para um liberal, as funções do Estado devem reconduzir-se às que originaram o contrato social instituidor: segurança, liberdade e propriedade privada. Nessa medida, deve pugnar pela concentração dos poderes públicos nessas funções essenciais, desempenhadas cada vez mais deficientemente pela sua preocupação em ser «Estado Social», e pela devolução do restante aos seus legítimos possuidores: os indivíduos.

4. A democracia é um meio e não um fim, um mecanismo imperfeito mas útil para, nas sociedades humanas actuais, impedir os excessos do poder político, facilitando a alternância na direcção do aparelho do Estado por meios não violentos. Contudo, a exaltação dos valores democráticos pode esconder os mais perigosos excessos totalitários. Autorizar o exercício ilimitado do poder, por via da soberania absoluta da lei, com fundamento na legitimação do voto, é um exercício pouco liberal.

5. O que nos deverá levar, também, a ter muito cuidado com a exaltação da «soberania nacional». Conceito decorrente do oitocentismo revolucionário e jacobino de filiação rousseauniana, o amor pela «soberania» esconde sempre a tentação dirigista de grupos que se instalam ou pretendem instalar no aparelho do Estado. Para um liberal, a soberania é do individuo, e a sua transferência para Estado não é um bom presságio.

6. O liberalismo privilegia o relacionamento directo entre os cidadãos, sem qualquer intermediário de permeio que não tenha sido por eles livremente escolhido. Por isso, sempre pressentiu virtudes nos processos de liberalização do comércio, através dos quais a liberdade sai reforçada. A União Europeia, primeiro pela criação do Mercado Comum, mais tarde transformado em Mercado Interno ou Único, é provavelmente a mais espantosa realização de liberdade mercantil realizada depois da afirmação do Estado-Nação. Razão pela qual parece pouco liberal admitir, ainda que como hipótese, a saída de Portugal da União Europeia, justificada por eventuais «perdas de soberania». Isso representaria um indesejável regresso ao colbertismo, ao mercantilismo, em suma, ao nacionalismo económico.

7. Um liberal aceita a existência de uma ordem moral objectiva, formada por regras de justa conduta, que representam as melhores soluções apuradas pelo tempo para os problemas e necessidades dos indivíduos e da sociedade. Assim, poderá condenar certo tipo de práticas como o aborto, ou comportamentos tidos como desviantes, na medida em que não beneficiam, antes prejudicam, todos os seus intervenientes. Não poderá, contudo, pretender impor aos outros a sua visão moral, menos ainda fazê-lo por via do poder do Estado, nem tão pouco deverá aceitar que o discurso político entre por essas vias.

8. Na intervenção política e partidária, um liberal deverá ter sempre presente que o Estado é o «inimigo principal» e, por isso, há-de evitar o fascínio pelo jogo político da distribuição de lugares e de influências, pela disputa de quotas de poder nos aparelhos públicos, ainda que sejam justificadas pelo canto da sereia de que «temos de lá estar, para mudar por dentro».

9. O liberalismo não estima os «homens providenciais», os «salvadores de pátrias», os «líderes carismáticos». A política há-de ser tida como um exercício de uma profissão como outra qualquer, posta em campo para dar execução a um contrato estabelecido entre duas partes: o poder público e o poder civil. A exaltação das «qualidades» dos chefes é muito útil para saciar vaidades pessoais, para resolver traumas de infância, mas não representa qualquer benefício para uma sociedade livre. A liberdade individual prescinde bem de «carismas» políticos e costuma mesmo sobreviver-lhes mal.

10. A cedência aos princípios fundamentais da liberdade em nome de interesses ou objectivos pragmáticos, ditos de circunstância, do «grupo político» onde nos encontramos, resulta sempre, a prazo, no abandono dos mesmos, e na miscigenação de projectos eventualmente generosos e originais no grande centrão político dos interesses do Estado. É um caminho de perda que, uma vez iniciado, dificilmente tem retrocesso.