28.11.04

SANTA POLÍTICA DE OPINIÃO

O Público é o melhor jornal português. De longe. Muitas são as razões e escuso-me a enumerá-las todas.
Gosto sobretudo dos editoriais e dos artigos de opinião. Mas, aqui, o Público padece de uma lógica comum a quase todos os jornais portugueses: põe um bocadinho de sabor para todos os gostos.
Há de tudo na "opinião" do Público. Desde a nova-esquerda-anti-alter-globalização-capitalista até à defesa iconoclasta da economia de mercado. Todos se podem rever na "opinião" do Público. E mesmo quando não se gosta do que se lê, geralmente, o respeito pelo discurso lógico e estruturado tornam a leitura agradável, mesmo indispensável - é o que se passa, hoje, com o artigo de Augusto M. Seabra.

O exemplo da variedade de sensibilidades opinativas no mesmo sector de mercado de opinião é-nos dado pelos escribas de serviço que representam a igreja católica.
Nesta matéria, o Público esmerou-se, pois conseguiu reunir o conservadorismo atávico de um Mário Pinto com o vanguardismo religioso e frentista de Frei Bento Domingues - não podem existir textos mais antagónicos e discrepantes acerca de quase todos os assuntos chave do mundo contemporâneo e, no entanto, ambos servem a mesma organização e é em nome desta que têm intervenção pública.

Quem se der ao trabalho (árduo) de ler até ao fim o panfleto dominical que Frei Bento Domingues produz (o de hoje é um bom [mau] exemplo) consegue encontrar todos os mais estafados chavões da esquerda revolucionária de timbre latino-americano, salpicados, aqui e além, com citações do Evangelho e referências a vidas de santos. Mas a sua lógica permanente é sempre igual: o ataque descabelado e infundamentado à sociedade de consumo, a visão do mercado como um advento próximo do Apocalipse, as alusões a Bush como um quase-anti-cristo que já está no meio de nós, a inacreditável comparação dos actos dos americanos com os horrores da ditadura de Sadham («as marcas da barbárie de tecnologia bélica dos EUA serão apagadas. Todas as mentiras e todas as violações dos direitos humanos serão em breve esquecidas»), tudo num tom de hipérbole milenarista anti-liberal que consegue colocar um Fernando Rosas num plano moderado e quase sensato (!).

Por outro lado temos Mário Pinto, a quem aqui já classifiquei de "catástrofe intelectual". Este representa o outro extremo da organização: a igreja "Cerejeira" que conviveu muito mal com o pós-salazarismo e ainda a tresandar a salazarenta, o grupo que gostaria de fazer do penalização do aborto o assunto maior da política nacional, os que usam e abusam de expressões como "família normal" e "tradicional", os que julgam ter encontrado a verdade moral das coisas do mundo e reclamam a sua titularidade exclusiva, os que nunca desistem de tentar impor a todos os outros (à força, se os deixarem) a sua visão integral da existência humana, as seitas em número crescente tocadas pela asa negra do fundamentalismo, os que admiram e invejam Buttiglione e não querem enxergar o truque político que este protagonizava, ou seja, o conservadorismo sempre bacoco e granítico por mais roupagens liberais, ou de mercado, que queira travestir.

Ao fazer a síntese destes contrários, o Público nada mais faz do que seguir o sábio exemplo milenar da organização de onde os mesmos provêem. Repetindo a receita eclesiástica-política , plena de êxito, de que é preciso defender tudo e o seu contrário acerca da mesma matéria para se poder atingir a maior abrangência de "públicos" possível.
Qualquer que seja o ponto de vista há sempre uma citação de uma Encíclica que se adequa à nossa preferência; tal como existe, com certeza, um artigo de opinião que concorda connosco.
E o contrário também é verdadeiro.