29.11.04

LEI E LIBERDADE



Uma frase do Carlos Novais, inserida num comentário a um post que aqui editei, coloca, a meu ver, o problema essencial em torno das sociedades políticas contemporâneas.
A frase é a seguinte: «Soberania não significa proteccionismo, mas sim a capacidade de auto-regulamentação e de definir autonomamente Lei». O problema é este: o que devem entender os liberais pelo conceito de «lei»?

1. Legalidade e Igualdade
O princípio de que as sociedades humanas devem conformar-se de acordo com a lei é, sem dúvida, um postulado herdado do liberalismo constitucional oitocentista. Nessa época, o que estava em causa era submeter o poder ilimitado dos príncipes a regras objectivas que o refreassem, geradas por assembleias representativas, se bem que o conceito de representação política fosse ainda muito pouco claro. Tratava-se, também, de começar a impor a igualdade jurídica dos cidadãos, ou seja, de fazer assentar o direito em normas gerais e abstractas, que não os discriminassem e que fossem aplicadas em razão da matéria e não da pessoa. Eram os princípios jurídicos da legalidade e da igualdade, que muito devem ao liberalismo e aos quais muito devemos todos nós, também.

2. «Rule of Law» e «Rechtsstaat»
Contudo, o entendimento daquilo que será a obediência da sociedade política e da sociedade civil à «lei», varia conforme as experiências históricas. Na Europa continental, desenvolveu-se o Estado de Direito, o «Rechtsstaat» germânico, ou o État Légal francês. Em Inglaterra e nos EUA o caminho foi outro: o «Rule of Law» e o «Government under the Law».
Na aparência, e na aparência somente, os conceitos equivalem-se, na medida em que, de facto, em ambos os casos se pressupõe que o governo se submeta à «lei», sendo esta constituída por normas gerais e abstractas, logo, de igual aplicação para todos os cidadãos. Por essa razão, se utiliza erradamente a expressão «Estado de Direito» para designar indistintamente aqueles modelos de organização política, como se fossem iguais.

3. As «regras de justa conduta» e a soberania popular
Porém, a questão de fundo, do ponto de vista da concepção liberal do Estado e, sobretudo, da sociedade, não é tanto o de sabermos se aquele se conforma à lei, mas a de determinar os limites do conteúdo desta última. Aqui, a evolução das duas experiências históricas acima citadas tem divergências inconciliáveis.
A «law» anglo-saxónica deverá traduzir-se por «direito», em sentido amplo, e não apenas por «lei» como fonte criadora de normas jurídicas resultante da afirmação da soberania nacional, popular ou estadual. Para um liberal, estas três últimas expressões são, no caso vertente, sinónimas. Assim, vertem para a ideia de direito nos países de filiação anglo-saxónica não apenas as leis soberanas do Estado, mas, também, usos e costumes sociais, e a jurisprudência dos tribunais que, muitas vezes, os incorpora. Ora, neste sentido, a submissão do «governo à lei» é a afirmação de que a sociedade política se submete à sociedade civil, exprimindo-se esta não apenas pelas suas assembleias representativas, mas pela formação histórica, evolutiva e consuetudinária daquilo a que Hayek chamou as «regras de justa conduta».
Nas sociedades de influência francesa e germânica, onde se insere a Europa continental, a «lei» é entendida em sentido estrito, como um documento formal resultante da manifestação da vontade de um órgão democrático do Estado. Aqui, e não tanto no valor material do seu conteúdo, se encontra a legitimidade da lei: a ratificação democrática e eleitoral dos órgãos que a produzem. Nada mais.

4. A «Lei» é o novo senhor absoluto
O problema situa-se precisamente na identificação da «lei» como um resultado da «soberania». Ora, sendo aquela fruto desta, e representando esta a vontade dos cidadão expressamente delegada aos seus representantes democraticamente eleitos, não lhe deverão ser impostos limites que não sejam, obviamente, os que lhe são impostos pelos princípios estruturantes do Estado de Direito, cada vez mais circunscritos a alguns direitos fundamentais de cariz personalista.
Porém, como a evolução do Estado Social europeu deixa compreender, não há actualmente praticamente qualquer limite ou entrave à «lei» e à sua correlativa «soberania». A história do «proteccionismo», ao qual se opõem os liberais, é a história da soberania da lei: hoje, nas nossas sociedades, o Estado legisla livremente sobre o que quer, como quer e bem lhe apetece. Se no Ancien Régime o poder de legislar era ilimitado e estava entregue a um soberano singular sem legitimidade democrática, actualmente esse poder reforçou-se, porque alcançou domínios sociais nunca imaginados naquela época, só que está confiado a um soberano plural, supostamente representativo da comunidade, ao qual vais buscar a sua legitimidade formal. Do ponto de vista liberal, para o qual interessam mais as consequências dos actos de poder do que a sua fonte, as coisas não estão muito diferentes.

5. As verdadeiras origens do conceito continental de «lei»
O nosso entendimento de «lei» é o da expressão absoluta e intransponível da soberania popular, da volonté générale de Rousseau. Por isso, por supostamente representar uma vontade comum, ela deverá ser acatada e respeitada.
Este conceito, verdadeiramente imposto a partir do fim do século XIX em diante, manteve o absolutismo legal, fazendo apenas mudar, pelo menos teoricamente, os titulares da sua determinação. Trata-se, porém, de um conceito antigo, verdadeiramente originário no direito romano justinianeu do século VI, imposto a partir do século XIII na Europa continental, quando se deu o chamado «renascimento do direito romano». Nessa altura, os príncipes europeus dos Estados em desenvolvimento, aproveitaram para as suas conveniências de centralização do poder o direito dos Césares do período do Baixo-Império (séculos IV e V). Bodin e Hobbes legitimaram nos príncipes a soberania da lei. Jean-Jacques Rousseau transferiu-a para as assembleias.
Hoje, fiéis à tradição rousseuaniana, continuamos a aceitar esta ideia de lei, bastando-nos a sua legitimação democrática e eleitoral. Nos países anglo-saxónicos, onde o direito romano não teve a importância que conheceu na Europa continental, o conceito de direito e de lei são, como vimos, outros e bem diferentes.

6. Liberalismo, lei e soberania
A afirmação da soberania nacional, popular, comunitária ou outra qualquer, acaba sempre pela sua delegação a entidades representativas, sendo que se transmite um poder considerado máximo e praticamente ilimitado, que assim se mantém na sua sede de exercício. Não é, efectivamente, uma atitude liberal. Como o não é igualmente considerar suficiente que o governo aja conforme a lei sem atender ao seu conteúdo (e não falamos na necessária observância dos direitos fundamentais de liberdade e dignidade que, mais do que pilares do Estado de Direito, são estruturas e padrões civilizacionais inquestionáveis), se, e porque, quem a faz é exactamente? o governo (sensu lato).
O liberalismo deverá, por conseguinte, preocupar-se essencialmente com o conteúdo da lei como forma de expressão da vontade do príncipe que, actualmente, se configura no Estado democrático e com procedimentos da sua eficaz limitação. Podemos dizer, sem receio de nos equivocarmos, que nunca como agora o poder do Estado foi tão grande, não lhe escapando qualquer domínio da vida social. O que significa que a lei deverá reconduzir-se às «regras de justa conduta» e não à vontade soberana, tendo naquelas o seu núcleo material essencial e os seus limites de intransponibilidade.

7. União Europeia, soberania e liberdade
A construção comunitária, embora tenha muito de centralismo, teve o mérito de dissolver alguma da excessiva soberania estadual europeia, devolvendo-a em parte aos cidadãos. Sobretudo nas suas liberdades individuais de livre-circulação e comércio. Se essa tendência se mantiver, e não se percebe porque não há-de manter-se, dificilmente em Bruxelas se instalará um governo forte que substitua os anteriores governos nacionais. Onde existe liberdade, não subsiste a coação.
Ou, será que nós liberais, já não acreditamos nas virtudes do mercado, da liberdade e do comércio como formas de crescimento social, e desconhecemos a regra de que quanto mais forte é a sociedade civil, mais ténue terá de ser a sociedade política?