Ontem assisti, pela primeira vez, a um espectáculo na Casa da Música. Cheguei bem cedinho, tendo tido a oportunidade, assim, de visitar o edifício e todos os seus recantos, com tempo.
Num país de poucos recursos, não sou especial adepto de investimentos públicos desta envergadura. Muito menos quando a derrapagem ultrapassa os limites do razoável.
Agora, o edifício da Casa da Música ultrapassou todas as minhas expectativas. Tem os seus defeitos, é certo. O maior, realmente, é a sua localização num gaveto entre a Avenida da Boavista, a Rua Cinco de Outubro e a Rotunda; perde-se o impacto que o edifício poderia ter, se construído num local onde pudesse ser apreciado a uma certa distância. A porta de entrada, também, não pode estar permanentemente aberta para a rua, pois provoca um túnel de ar que circula por dentro do edifício.
Agora, a beleza exterior do edifício, os foyers, as suas salas principais, a cyber room, a escolha dos materiais, tornam este recinto um dos mais belos que até hoje visitei. A Casa da Música, onde actuou Mariza, transfigurou-se: a sua voz, de facto, aliada à magia da sala, com a sua sonoridade, conforto, pela forma como se recria com os jogos de luzes, suspendeu o meu espírito, que vagueou por aquela sala durante as duas horas; ainda hoje me sinto longe.
A minha percepção pode estar a ser, em parte, influenciada pelo meu orgulho portuense, esse orgulho que muitos consideram provinciano e saloio (é sabido que os filhos, naturais ou, na maior parte dos casos, adoptivos, das grandes metrópoles não se apegam à sua terra, pois o cosmopolitismo impõe que sejam «cidadãos do mundo», tornando-os, em geral, «cidadãos do nada»); mas o fascínio que provocou em mim a Casa da Música não foi menor que o que senti nos cinco mil metros do Kilimanjaro, a quinze metros de profundidade na Grande Barreira dos Corais, na primeira viagem de helicóptero à volta de Manhattan, navegando ao fim da tarde no Bósforo, ou calcorreando as praias do Príncipe. Por isso recomendo a todos uma visita à «Casa da Música», de espírito aberto e «desintoxicado». Estou certo que quererão voltar.
Rodrigo Adão da Fonseca
P.S. Muito se tem discutido sobre a pretensa falta de um «Fosso de Orquestra» na Casa da Música. De facto, o edifício foi construído para potenciar certas valências, em detrimento de outras. Eu não sou versado em arquitectura nem em acústica. Ao que consta, a abertura de um fosso entre o palco e a plateia teria um forte impacto na sonorização da sala, limitando aquilo que se pretende venha a ser a Casa da Música, desvirtuando a sua vocação. O Porto já dispõe de uma sala de espectáculos, o S. João, com o tal «Fosso de Orquestra». A opção foi, por isso, construir - não uma «Ópera do Porto» - mas uma «Casa da Música».
Tal, aliás, nem é inédito: o Royal Festival Hall, onde reside a London Philharmonic Orchestra, ou o Philharmonie Building, em Berlim, só para citar alguns exemplos, não dispõem do tal «fosso». A Casa da Música não é, ao contrário do que julgam alguns letrados (cuja grande preocupação é não ter uma mesa disponível para tomar o chá), um «campo de futebol sem balizas»: utilizando a terminologia desportiva, tão do apreço do cidadão comum, pergunto: será que todos os desportos que se praticam com bola têm «balizas»? Já pensaram o que seria um campo de basket com balizas? Porque é que o Estádio da Luz e de Alvalade não têm uma valência para o ténis, ou uma «pista de tartan»? Se os desportos necessitam de equipamentos adequados aos seus objectivos, será que tal não deverá ocorrer na música?