8.4.05

OS MEDOS DO SANTO PADRE

(texto publicado no "Semanário" em 23 de Agosto de 2002)

Na nona visita à sua terra natal desde que foi eleito em 1978, João Paulo II alertou sobre os perigos da sociedade contemporânea, particularmente aqueles que resultam do que considera ser «o progressivo abandono de Deus» no mundo ocidental. Parece-me que este tipo de angústias se inserem legitimamente no campo natural de actuação do Chefe da Igreja Católica.
Na verdade, uma constatação bastante fácil de fazer é que a Igreja encontra actualmente enormes dificuldades nos países mais desenvolvidos do mundo. A crise de vocações para o sacerdócio é cada vez maior. Algumas das mensagens predilectas do Vaticano, como aquelas que se referem aos comportamentos sexuais, são frontal e piedosamente ignoradas pela generalidade dos católicos assumidos. Paradoxalmente, a importância da sua voz em assuntos internacionais esbateu-se após o colapso do comunismo no Leste europeu - o que não pode deixar de parecer uma retribuição demasiado ingrata depois de tudo o que Karol Woitilla fez pela libertação da sua pátria.
Ainda por cima, nos últimos anos avolumam-se os escândalos com padres pedófilos, agravados por desastrosas tentativas de encobrimento por parte da hierarquia eclesiástica.
Desta forma, convenhamos, os tempos não estão fáceis para a Igreja Católica e, naturalmente, o Papa aflige-se.
Mas, se atentarmos bem ao conteúdo do seu discurso, não é bem neste tipo de razões que o Papa encontra motivos de descontentamento.
Afinal, nos chamados países ricos, onde reside a inquietação do Chefe da Igreja? Não nos efeitos de uma eventual repressão religiosa, que não existe. Nem devido a especiais conturbações ou crises de qualquer espécie que, de uma maneira geral, pelo menos na última década lhe têm passado completamente ao lado. Também não deve ser pelas desigualdades sociais escandalosas, pois estas estão situadas nas áreas menos desenvolvidas do globo.
Então, de onde vêm as angústias do Santo Padre? Ele mesmo o disse: das mais recentes descobertas científicas, particularmente na área da genética, «onde o Homem, orgulhoso, quer substituir Deus nos mistérios da vida».
Por outro lado, João Paulo II também parece encontrar motivos de reparo no «liberalismo, que arrasta o mundo para um materialismo sem Deus».
Tudo se torna, agora, mais claro. Afinal os medos da Igreja de Roma, hoje, parecem ser os de sempre. Há séculos que ouvimos críticas semelhantes. É difícil encontrar na história da Ciência uma descoberta relevante nos domínios da vida, nas explicações acerca do Universo e do Homem que não tenha tido, no seu tempo, a oposição irada dos representantes do pretenso exclusivo da Igreja nestas matérias. Foi assim quando se ensaiou a inseminação artificial, quando Freud explorou os domínios da mente, quando Darwin traçou a teoria da evolução das espécies, quando Copérnico elucidou alguns dos mistérios do nosso sistema solar, entre tantos outros exemplos. Se examinarmos os actuais receios papais, com as devidas adaptações relativas às diferenças das épocas, a sua lógica é exactamente igual.

Do mesmo modo, as objecções àquilo que o Santo Padre parece entender por liberalismo assumem ressonâncias antigas e inquietantes. É novamente a censura genérica aos comportamentos que visam o lucro - tidos como para-demoníacos - e que encerram uma verdadeira aversão ao sucesso individual. Trata-se, ainda, de um anacrónico desconforto com a possibilidade dos homens, por si, graças à qualidade do seu esforço, poderem alcançar a felicidade e o bem-estar terrenos. E, sobretudo, uma nunca superada inclinação para as virtudes do despojamento de bens materiais, para uma cultura de pobreza, parecendo indicar uma estranhíssima equação de vida do tipo quanto menos tiveres, maior e melhor será a tua relação com Deus.
Todos sabemos que a Igreja de Roma foi sempre a primeira a não assumir essas verdades como revelações para si mesma - nomeadamente quanto às vantagens da pobreza. Mas, perante reiteradas declarações deste tipo, não é possível deixar de imaginar o arrepiante atraso no nosso estádio civilizacional em que estaríamos se as anteriores tentativas quanto aos avanços da Ciência e às questões da liberdade individual tivessem tido êxito.

Tenho uma grande consideração por este Papa. Até à queda do Muro de Berlim atingiu uma dimensão poucas vezes alcançada pelos seus antecessores nos últimos séculos. Para além disso, conseguiu que o catolicismo retomasse a sua ligação com o sagrado, que se encontrava esboroada desde o Vaticano II. Agora, limita-se a recuperar velhos receios, a agitar fantasmas antigos sobre o progresso do conhecimento e a faculdade humana de optar por um destino melhor.
Se Deus quiser, será recordado pela primeira parte do seu pontificado.