29.10.05
ABORTO FATAL
A expressão tensa e grave com que o Primeiro-Ministro apresentou ontem ao país a decisão do governo sobre a lei do aborto, contrasta com o ar habitualmente blasé e descontraído que costuma ostentar nos momentos de crise. Foi assim a seguir à pesadíssima derrota das autárquicas, tem sido assim nas referências às más perspectivas para as presidenciais e sobre a candidatura divisionista e imprevista de Manuel Alegre, e assim tem sido quando comenta as sucessivas greves e problemas corporativos com que o seu governo se tem confrontado. A expressão com que ontem enfrentou o país era, ao contrário do habitual, de profunda e grave preocupação.Porquê, então, se o assunto é aparentemente de muito menor importância para a vida do país, do governo e do partido que dirige?
Provavelmente, porque, ao contrário de todos os outros assuntos, este divide efectivamente o Partido Socialista e a decisão do governo, o mesmo é dizer de José Sócrates, terá provocado a incomodidade e revolta de muitos dos seus militantes e dirigentes. Enquanto as greves, as batalhas eleitorais e, até, a estrambólica candidatura de Alegre são vistas como ataques do exterior para dentro do partido, unindo militantes e dirigentes e, no caso de Alegre, unindo pelo menos a direcção do partido, o aborto e o adiamento da sua despenalização, toca profundamente no interior e na alma do partido, no âmago da esquerda que ele representa, e que, por isso, não aceita nem compreende a posição de Sampaio e, agora, a de Sócrates. Sócrates pode ter prometido que não aumentava os impostos e tê-lo feito depois, no governo; Sócrates pode ter garantido que não colocaria portagens nas SCUDS e acabar por fazê-lo; Sócrates poderá ter grantido aos portugueses que lhes deixaria intocáveis as reformas e estar agora a retirar-lhes direitos. Tudo isso é importante, sem dúvida, mas é conjuntural. O aborto, não. O aborto é uma das principais bandeiras da esquerda e do Partido Socialista que a pretende representar.
Por isso, muito mais do que o abalo dos resultados autárquicos, das greves e do que aí virá nas presidenciais, as consequências da decisão de ontem serão bem mais desagregadoras para Sócrates e para o governo e o partido que o sustenta, que precisariam de estar unidos para enfrentarem os tempos mais próximos. A partir de ontem, essa união interna terminou.