26.10.05
CARTAS AMERICANAS - VI
Meu Caro CAA,
Espero que esta seja a última das muitas cartas que te escrevi nos dois últimos meses. Nem eu estou habituado a escrever cartas a homens, nem me parece que costumes receber muitas desse género (masculino), apesar de os tempos que correm serem incertos e imprevisíveis. Não me lembro de ter alguma vez trocado correspondência tão assertivamente com ninguém e, graças a Deus, parece que finalmente te vens embora dessa terra inóspita e troglodítica, de mascadores de chewingum e pistoleiros. Se o fiz, foi por pena de um camarada talentoso como tu, a viver nessa terra inóspita, sujeito certamente às mais negras e aviltantes formas de exploração capitalista do homem pelo homem!
Continuo sem perceber o que te levou a semelhante empreitada, embora te deva dizer que não foste muito original. Lembro-me bem que, antes ainda da gloriosa data libertadora do 25 de Abril, muitos camaradas iam exilar-se para aí, para os EUA, pátria do capitalismo que sempre aviltámos. Esse enorme enigma da história do progressismo português não tem, para mim, ainda hoje solução. Que raio ia essa malta fazer para as terras do Tio Sam, quando do lado oposto radiava o sol glorioso da pátria do socialismo, a hoje tão aviltada e eternamente saudosa União das Repúblicas Socialistas Soviéticas? É certo que a esmagadora parte desses dissidentes de aviário, eram intelectuais. Gente para desconfiar, simpatizantes do renegado Trotsky, tipos de que necessitávamos para dar espessura teórica ao nosso pensamento dialético, mas, no fim de contas, socialistas de aviário, como bem se tem visto nos últimos anos, unidos a direita e até próprio PSD. Havia de lhes ter dado a eles esta gripe das aves, com que andamos por aqui apoquentados, sobretudo nós, os mais velhos e depauperados. No Comité Central, com medo da epidemia, há até quem proponha umas férizinhas em Cuba, na terra do nosso Fidel, um dos poucos sítios onde ainda se pode ir descansado. Mas parece que aquilo vai para lá um pandemónio, com tufões e furacões. Certamente, coisas dos americanos e do Bush, que desenvolveram tecnologias infernais para atacarem os povos progressistas e oprimidos do globo.
Quando cá chegares vê se dás notícias. Precisamos de pôr a conversa em dia e de analisar dialeticamente os acontecimentos mais recentes da nossa política. Não é que haja grandes novidades. A bem dizer, estiveste por aí dois meses, mas se tivesses estado dois anos ou mesmo vinte, não ias encontrar grandes diferenças: o País em crise como sempre, as greves a sucederem-se em catadupa (já só falta mesmo ocupar outra vez a ponte), e a política, como sempre, a girar em torno do Soares e do Cavaco. O Soares, bonacheirão e sonolento como habitualmente, a dizer que nos vai salvar do abismo e da direita. O Cavaco, cheio de energia e de vontade de servir Portugal, disponível para nos ajudar a sair da crise. Como vês, caro CAA, está tudo na mesma. Andamos há trinta anos a ser salvos pelo Cavaco e pelo Soares e, provavelmente, nos próximos trinta ainda por cá andarão, ectoplasmicamente, a salvar-nos. Pensando melhor, se por aí ficares mais uns meses, armo-me em intelectual e vou exilar-me contigo. Agora que já leio «Expresso» e tudo, desde a saída do reaccionário Saraiva, já me sinto um homem de letras e de cultura. E, como já não existe a URSS e o Fidel, mais tarde ou mais cedo, também não, talvez até te faça uma visita?
Entretanto, recebe um forte abraço solidário e hasta la vitória , siempre!