Caro Rui,
Um excelente texto o teu, sem dúvida; existe um aspecto que - não discordando do que escreveste - penso merecer alguma discussão adicional.
O liberalismo que apresentas tem da natureza humana uma visão realista, mas de um realismo que me parece subtilmente pessimista:
Sendo certo que o liberalismo reconhece a finitude e a precariedade da existência humana e a dimensão trágica que isso comporta na vida de cada indivíduo, daí retira um primeiro postulado: que os seres humanos devem conduzir as suas precárias existências dentro do princípio da máxima liberdade possível, isto é, que não tenham entraves ao desenvolvimento das suas vidas senão os ditados pela própria liberdade alheia.
Mas, sabendo que a alma humana não tende naturalmente para a filantropia, sabe que o princípio no relacionamento humano é o da cooperação em vista a fins benéficos comuns. Por isso, quanto menos intermediários existirem, sendo que o Estado mais não é do que um intermediário com interesses próprios a agir em causa alheia, melhor poderão compor os seus interesses e obter resultados de soma mais positiva para as partes. Isto é, ninguém melhor do que os próprios interessados, para comporem os seus devidos interesses, La Palice puro.
Da minha parte, penso ser redutor considerar que a ideia de cooperação assenta na mera consciência de que por essa via se atinge a segurança, ou que promove a composição de interesses que melhor serve o indivíduo concretamente considerado. Esta é claramente uma visão hobbesiana; e admito que tenha acolhimento no liberalismo clássico. Não que considere estes pontos de vista incorrectos: ambas as premissas são para mim verdadeiras: a) a cooperação entre os indivíduos sem intermediações artificiais i) promove a segurança e ii) uma adequada composição dos interesses ao serviço dos indivíduos; b) sendo fonte de redução de conflitos.
Agora, algumas das novas correntes liberais têm subjacente uma visão claramente optimista da natureza humana, sem ser ingénua, mas promovendo o seu lado mais positivo. É o que ocorre, v.g., naquilo que é central no pensamento de Israel Kizner: o «seu» empreendedorismo é a transposição para a doutrina económica, pode dizer-se uma síntese, das ideias de iniciativa, cooperação e não intermediação, procurando libertar os indivíduos e a sua criatividade em busca da sua realização; algumas das suas demonstrações chegam aliás a resultados bem curiosos: ora, dificilmente se pode extrair das teses de Kizner uma ideia pessimista sobre a natureza humana. Aliás, a essência da economia de mercado na América - e isso dá-lhe uma face liberal - assenta na confiança que existe entre os cidadãos e os agentes económicos, fonte de redução dos chamados custos de transacção, fonte também de inovação nas diversas formas de cooperar, inviáveis em sociedades, digamos, mais «desconfiadas».
Não sendo um especialista nestas questões, mas um mero curioso, convido os nossos amigos AAA, LA-C e Tiago Mendes a «darem para este meu peditório», a contribuirem para este debate, uma vez que a sua formação económica e liberal (uns mais liberais do que outros, já sei) - e o seu conhecimento do mundo anglo-saxónico - certamente serão de enorme utilidade na discussão destes aspectos que considero serem pilares essenciais do funcionamento dos mercados eficientes e ao serviço dos indivíduos concretamente considerados: iniciativa, confiança entre os agentes, desintermediação e desburocratização.
Rodrigo Adão da Fonseca