31.10.05

OPTIMISMO E PESSIMISMO: ESQUERDA E DIREITA



Uma certa direita fixa a fronteira que a divide da esquerda na perspectiva optimista ou pessimista que se possa ter sobre a vida. É uma recorrência vulgar, que a lança em equívocos de toda a espécie. Trata-se, por conseguinte, de um critério a evitar.
Antropologicamente, a direita, fundando-se numa perspectiva cristã da existência, está consciente da finitude e da necessária precariedade da vida. Das suas limitações e da insignificância de muitos dos seus acontecimentos que, enquanto homens, por vezes valorizamos em demasia.
Politica e filosoficamente, na senda de Unamuno, a vida é tragédia, porque para o homem consciente ela é efémera e fugaz. «Um homem que não é daqui, nem dali, nem desta época nem de outra, que não tem sexo ou pátria ou ideias, não é um homem», escrevia o poeta espanhol, para quem o homem concreto e não o homem abstracto deve ser a essência da filosofia e da política.
Ora, esta lição libertária de Unamuno, a direita tradicional não compreendeu. Ela supõe que a consequência da consciencialização da dimensão trágica da vida é, na hipótese conservadora, deixar o destino ao governo de Deus na terra, e, na via revolucionária, fazer da vida uma luta diária e permanente.
Estas duas tradições da direita assentam, de facto, num pessimismo antropológico e têm-na marcado muito na Europa continental da modernidade pós-Revolução Francesa.
Daqui, facilmente se chega ao pessimismo antropológico-político de Hobbes, que, descrente de uma natureza humana condicionada pelas necessidades mais básicas, a vê caminhar para a destruição, na inexistência de uma autoridade superior que lhe condicione e oriente discricionariamente a existência. Se a natureza humana, em Hobbes, é naturalmente conflitual, ela terá de ser superiormente domada.
No século XX, a direita europeia julgou beber na Etologia de Konrad Lorenz os fundamentos científicos para a malvadez humana e aqueles que se ficaram pelo título da sua obra mais divulgada - «A Agressão, uma História Natural do Mal», acharam mesmo que, finalmente, a ciência tinha descoberto os fundamentos para a proclamação de um Estado forte, dominador, que domesticasse a fera humana: perante tanta e tamanha maldade do género humano, como cuidar dele, dos «homens concretos» de Unamuno, dos «lupi» de Hobbes, senão com o «Príncipe» de Maquiavel, a quem mais valia ser temido do que amado, não fossem os súbitos perversos aperceberem-se da sua fragilidade de sentimentos e perderem-lhe o temor reverencial que, na verdade, constitui a legitimidade de qualquer governo? Alaind eBenoist rejubilou e, «nova direita» que sempre fora a direita velha, reencontrou o seu caminho da modernidade. Em portugal, a direita que por aí anda, não percebeu ainda como a «Nouvelle École» a influenciou. E, em boa verdade, também não merece que se perca muito tempo a explicar-lhe.

Em contrapartida, para a direita dita pessimista, a esquerda padece de uma imensa benevolência para com o género humano. Julgam-na ainda agarrada ao «bom selvagem» de Rousseau, e convencem-se que, no essencial, ela presume que uma boa educação, suportada na igualdade de recursos, é suficiente para salvaguardar a boa ordem social e o desenvolvimento igualitário dos homens. Infelizmente, têm razão: a esquerda dita moderna pensa mesmo assim.

E numa senda generalizadora que a costuma caracterizar, a direita afirma levianamente que, tal como a esquerda, também o liberalismo é naturalmente optimista, porque confia em algo que não existe ? o mercado ou a mão invisível ? para manter uma ordem social espontânea, ela também inexistente. Daqui, retirar-se-iam, pelo menos, duas consequências: o liberalismo é politicamente irrealista e ingénuo, e é ideologicamente de esquerda. Com estas duas supremas «verdades» sobre o liberalismo, e mais algumas como o jacobinismo e o anti-clericalismo revolucionário, tem vivido feliz a nossa direita doméstica.

Ora, as coisas não são exactamente assim. Infelizmente, a direita que leu o «Príncipe» de Maquiavel, esqueceu-se de ler também os seus «Discorsi». E, ao contrário das suas habituais simplificações, como aqui já dissemos, o liberalismo não está à esquerda, como também não está à direita, como a esquerda, por sua vez, pretende.

Sendo certo que o liberalismo reconhece a finitude e as precariedade da existência humana e a dimensão trágica que isso comporta na vida de cada indivíduo, daí retira um primeiro postulado: que os seres humanos devem conduzir as suas precárias existências dentro do princípio da máxima liberdade possível, isto é, que não tenham entraves ao desenvolvimento das suas vidas senão os ditados pela própria liberdade alheia.
Mas, sabendo que a alma humana não tende naturalmente para a filantropia, sabe que a o princípio no relacionamento humano é o da cooperação em vista a fins benéficos comuns. Por isso, quanto menos intermediários existirem, sendo que o Estado mais não é do que um intermediário com interesses próprios a agir em causa alheia, melhor poderão compor os seus interesses e obter resultados de soma mais positiva para as partes. Isto é, ninguém melhor do que os próprios interessados, para comporem os seus devidos interesses, La Palice puro.
Como sabe, também, que ao instalarem-se no poder, os homens agem preferencialmente em defesa dos seus próprios interesses, dos daqueles que directamente representam e que os ajudaram a atingir o poder soberano. Por essa razão, e não ignorando a essencialidade social das estruturas políticas de direcção, o liberalismo defende que elas devem circunscrever-se àquele mínimo de funções que, de facto, justifiquem a sua existência útil para o comum dos mortais que, de resto, são quem a sustenta pelo esforço do seu trabalho. «Todo o poder corrompe. O poder absoluto corrompe absolutamente!» Só que, nos dias que correm, o poder absoluto não está em poder dispor discricionariamente dele em violação do mínimo ético dos direitos fundamentais dos seres humanos, como a vida ou a liberdade de expressão. Está em poder dispor discricionariamente do poder de fazer a lei, corrompendo a sua própria natureza, fundando-se em formalidades escrutinarias, no exercício das quais o eleitor médio não tem consciência do mandato que está, de facto, a emitir.

Por estas razões e por muitas outras mais, o liberalismo quer um Estado mínimo, dotado de poderes reduzidos, ocupado por cidadãos que sejam controlados nos seus comportamentos e acções públicas. Se o liberalismo prefere o mercado ao Estado, a decisão individual à escolha pública e a mão invisível às muitas mãos bem visíveis do governo, não é por ser uma filosofia antropologicamente optimista e idiota. É, pelo contrário, porque nos diagnosticou devidamente enquanto homens, e porque não tem ilusões sobre a nossa igualdade antropológica.

Como dizem frequentemente os seguidores de Hermes Trimegisto, «o que está em cima é igual ao que está em baixo». Retirando a frase do seu contexto esotérico, diria que quem governa é igual a quem é governado. Não existem anjos alados entre os homens e os seus governos. Apenas se distingue nos meios de poder que tem ao seu alcance para pôr em prática a sua vontade. Que, na maior parte dos casos, ainda que esteja genuinamente convencida de estar a defender o «interesse público» comete verdadeiras atrocidades sobre os interesses privados, os das pessoas concretas de que Unamuno nos falava e que, em última análise, têm direito à sua própria felicidade. Por isso, o Maquiavel dos «Discorsi» preferia mil vezes a multiplicidade divisora dos podres da República Romana, à concentração iluminada do poder no «Príncipe». Na verdade, no seu tempo e à sua medida, nunca duvidei que Nicolau Maquiavel fosse também um liberal.