Ontem ouvi com atenção o discurso de Mário Soares, no Hotel Ritz.
Mário Soares e sua corte têm procurado ressuscitar nesta campanha o velho fantasma do «papão» da direita, fazendo associações à velha senhora por via de referências ao «messianismo», ao «revanchismo» e às «derivas presidencialistas». Dispenso-me de comentar a passagem onde o candidato presidencial afirma que com ele os «portugueses podem dormir descansados», pois ele irá zelar pelas suas «liberdades, direitos, garantias e haveres» (!), como se alguma destas realidades estivesse em causa neste processo eleitoral.
Em Portugal, a democracia está consolidada, vivemos além disso num Estado de Direito, num período conturbado, certamente, a passar dificuldades, também, mas num contexto onde o discurso pós-revolucionário deixou há muito de fazer sentido: não existe no Portugal de hoje qualquer risco de «presidencialização» do regime.
É verdade que quando as soluções governativas denotam uma evidente dificuldade em ultrapassar certas crises - como é perceptível em Portugal desde 2000 - surgem sempre vozes que apontam no sentido de conceder ao Presidente da República um maior papel, quer dentro do quadro constitucional vigente, quer até defendendo a revisão da própria Constituição (ver, a este respeito, o que dizem Gomes Canotilho e Vital Moreira, a propósito dos primeiros anos do novo regime constitucional, na sua obra Os poderes do Presidente da República, Coimbra Editora, 1991, p. 23 e 24). Agora, desde 1982 que a Constituição da República Portuguesa define de uma forma bem clara o lugar que o nosso sistema de governo reserva ao Presidente. E, Cavaco Silva - o candidato visado com estas insinuações - já afastou liminarmente a ideia de estar interessado em subverter os poderes que lhe venham a ser concedidos pela investidura presidencial.
Nesta eleição a discussão quanto ao papel presidencial apresenta amplo cabimento, mas noutro sentido.
O nosso sistema de governo tem, como bem referem Gomes Canotilho e Vital Moreira, uma «natureza híbrida ou mista» que lhe confere «uma versatilidade que os esquemas típicos do presidencialismo e do parlamentarismo clássico estão longe de possuir» (pág. 19, op. cit.). Estes autores, aliás, consideram ser «pouco feliz» designar o nosso sistema de governo de semi-presidencial (pág. 13, op. cit.). Até porque, na sua opinião:
«o chamado sistema semi-presidencial, pela sua origem histórica e lógica sistemática, pertence menos ao campo do presidencialismo do que ao parlamentarismo. O propósito dos constituintes de Weimar - que engendraram o primeiro sistema deste tipo - não era o de abandonar o parlamentarismo, mas sim o de o corrigir através de um elemento presidencialista. Pela sua natureza estrutural, tais sistemas continuam a manter as características essenciais do regime parlamentar - a saber: a responsabilidade política do executivo perante o parlamento - sem adquirir os traços essenciais do regime presidencial, ou seja, a chefia do executivo pelo Presidente da República e a separação entre Assembleia e o Governo» (págs. 14 e 15).
«O modo específico como o sistema [semi-presidencial] se apresenta depende», como bem assinalam estes dois constitucionalistas, «de um grande conjunto de factores, em que entram, designadamente, a concreta configuração constitucional dos poderes do Presidente da República, a tradição constitucional do país, o sistema de partidos, a relação do Presidente da República com o partido ou partidos dominantes» (pág. 19, op. cit.). Ora, o exercício do poder Presidencial depende em boa medida, quer dos poderes que em concreto a nossa Constituição lhe concede (neste plano bem menos presidencialista do que outros regimes similares, como v.g. o francês), das características intrínsecas do Presidente e da envolvente em que esse poder é exercido (relação com os partidos, exigência das questões em que o Presidente é chamado a intervir, da forma como o próprio governo e o parlamento exercem as suas funções).
Por isso, o que nesta eleição está em aberto, em boa medida, é uma opção que, no quadro constitucional vigente, os portugueses têm de tomar, aferindo quem apresenta, no actual contexto, e entre outros aspectos, maiores garantias de independência para exercer um cargo que é unipessoal.
Cada um dos candidatos deverá também ser capaz de demonstrar ao longo da campanha ser ele próprio digno de confiança por não estar condicionado para exercer a plenitude dos poderes que a Constituição da República lhe concede.
Mário Soares, no actual contexto político, dificilmente deixará de ser visto como um «árbitro vestido de rosa». A proximidade que sempre manteve com o partido actualmente no poder, do qual nunca se demarcou (ao contrário de Cavaco Silva, que fez a sua travessia no deserto ao longo dos últimos dez anos bem longe do PSD, como que dando um sinal aos cidadãos) é um peso que Mário Soares transporta neste início de campanha.
Na verdade, será normal que ao longo dos próximos dois meses os cidadãos tentem antecipar como será um consulado Soarista na Presidência da República exercido no actual quadro político, com uma maioria parlamentar do Partido Socialista.
Ora, o percurso de Mário Soares nos últimos dez anos, com uma militância activa e em certas ocasiões fracturante e, sobretudo, as duas atitudes tomadas nos dois últimos processos eleitorais (uma delas quando já era assumidamente candidato à Presidência da República) onde manifestamente a sua militância falou mais alto do que a sua vinculação à lei, leva a que seja licito recear que, face à sua improvável eleição, o que se assistirá será, dentro do quadro constitucional vigente, a uma real «parlamentarização» do Regime, a um «adormecimento» do Presidente da República.
Este é, efectivamente, o risco concreto que se corre. É isto que os portugueses pretendem?
Rodrigo Adão da Fonseca
P.S. Capa do Público via O Acidental.