«Durante a Antiguidade alguns sistemas de perscrutação dos desígnios da sorte, de auscultação dos sentimentos dos Deuses para com os homens, gozavam de grande prestígio. Quando alguém pretendia efectuar um negócio importante, fazer uma longa viagem, tomar uma qualquer decisão essencial para o seu futuro, um método considerado infalível para prever o que ia acontecer era o que consistia em observar cuidadosamente a cor interior do coração de um anho, sacrificado para o efeito. Também o fígado de aves era tido como fidedigno para se obter uma rigorosa perspectiva dos tempos vindouros. Mesmo os homens de Estado - parece que sobretudo estes - não escapavam a esta incessante necessidade: era de acordo com a mutação das tonalidades dos diversos órgãos dos mais variados bichos que se fazia a guerra e a paz, que os Tratados eram (ou não) celebrados, que os generais arranjavam coragem para lançar as suas investidas, que os reis eram aclamados ou traídos, que se fazia a glória ou a ruína dos homens públicos.
Hoje, o esquema não me parece ser muito diferente, se não na forma, pelo menos no seu conteúdo. Agora não se sacrificam animais - fazem-se audiometrias. Não se examinam entranhas sangrentas - analisam-se números, por amostragem. Já não é um grave sacerdote que decifra e interpreta os sinais e revela o devir - temos, presentemente, peritos em sondagens, novos feiticeiros do positivismo, que com um ar sério e um tom pretensamente científico nos esclarecem acerca da vontade da grande deusa dos tempos modernos: a opinião púbica.
Estou convencido que a margem de erro e a veracidade dos resultados não devem ter alcançado melhorias assinaláveis entre as previsões de uns e outros.»
Semanário, 24 de Novembro de 2000
(o artigo tem exactamente 5 anos, os links são de hoje, a "treta" em questão é a mesma)