23.11.05

Um País dual

Lembro-me de ter na Faculdade uma cadeira denominada "Desenvolvimento e Crescimento Económico" e de nela se abordar o dualismo das sociedades do Terceiro Mundo. Muito sucintamente, o modelo dual caracteriza-se pela concentração unipolar da actividade económica nos sectores industrial e de serviços numa única área urbana, geralmente a da capital. Esta, é destino de massivas migrações de todo o país, que demandam o único sítio onde haverá algumas oportunidades de emprego, amontoando-se em intermináveis "bairros de lata" e desertificando todo o restante território a que nem resta a agricultura de subsistência, inviabilizada pela escassez de mão de obra, de conhecimentos e sobretudo por longínquas PACs. A crescente concentração demográfica na capital, leva a que também se concentre nela o grosso dos investimentos em infra-estruturas públicas as quais, serão sempre escassas para a sobrepopulação existente, para além de constituirem um elemento potenciador desta. Este efeito cumulativo interminável de mais população, mais investimento, provoca uma drenagem contínua de recursos de todo o país em benefício apenas da capital onde tudo se concentra, desde o ostensivo novo-riquismo à mais degradante miséria.

O modelo de desenvolvimento português dos últimos 20 anos emula quase na perfeição o dualismo terceiro-mundista. Um Estado centralista e omnipresente, directa ou indirectamente em quase todos os sectores económicos, torna dele dependente a maioria das empresas de maior dimensão, atraindo desde logo os respectivos centros de decisão para junto do poder político. Quando se fala em centros de decisão, fala-se naturalmente em competências e em funções qualificadas, que por sua vez atraem os investimentos mais intensivos em massa cinzenta, os que mais apostam na inovação e no conhecimento e com maior efeito multiplicador no crescimento. Entretanto, na periferia, os sectores mais tradicionais debatem-se desesperadamente com escassez de recursos e de mercados, procurando adiar uma morte certa, de que resultarão mais e maiores migrações de desempregados para a florescente capital.

O Estado, por sua vez, assume geralmente a protecção, quase sempre via participação, de muitos dos sectores ditos de ponta, sempre considerados estratégicos (veja-se o caso da energia e das comunicações), hipotecando a sua sobrevivência, caso amanhã sejam forçados a actuar num mercado totalmente concorrencial. Assume ainda a seu cargo os investimentos em infra-estruturas públicas numa urbe em crescimento desenfreado, uns necessários, muitos dedicados ao espalhafatoso e eleitoralista "Deus Lazer" (vd. Expo, estádios, CCBs e Casas da Música), outros supostamente potenciadores do crescimento mas que redundam por sistema nos chamados "elefantes brancos", artisticamente montados em maciços pedestais de pedra, cimento e betão, revestidos a granito reluzente, para grande delícia e orgulho nacionalista dos papalvos (vd. Sines, Alqueva e os embrionários TGV e Ota).

Mesmo numa conjuntura recessiva e de dramático aperto orçamental como a que temos, os burocratas centrais não abdicam das grandes obras faraónicas na capital. Sintomático disso foi a alteração de prioridades definida quanto ao TGV na última cimeira ibérica, a inverter o que havia sido assumido na anterior cimeira da Figueira da Foz. Nesta, fora definida como prioritária a linha Porto-Vigo, a primeira a construir e a entrar em funcionamento. Na última cimeira, foi adiada para as calendas por muito aceitáveis razões orçamentais, mas priorizaram-se as linhas Lisboa-Madrid, Lisboa-Porto a 3ª travesia do Tejo e, cereja no bolo, o aeroporto da Ota, que necessita de todas aquelas mega-estruturas para angariar passageiros.

Diga-se que tenho muitas dúvidas quanto às prioridades definidas na Figueira da Foz. Em termos de impacto na revitalização do interior, afigura-se-me pelo menos com idêntica prioridade a linha mista (passageiros + mercadorias) Aveiro-Vilar Formoso cuja ligação a Valladolid, onde se situa a maior plataforma ibérica da indústria automóvel, multiplicaria a actividade do porto de Aveiro e potenciaria o aparecimento de actividades industriais no interior norte ao longo da linha. A linha Porto-Vigo, se também definida como mista, poderia ter um efeito semelhante face a Leixões, mas o seu maior impacto far-se-ia sentir no aeroporto de Pedras Rubras que triplicaria rapidamente o tráfego, pois teria assim garantida uma fácil acessibilidade em todo o eixo Vigo-Coimbra. Os burocratas centralistas estão bem cientes deste efeito multiplicador, do "perigo" que representa para a Ota, da redução de tráfego na Portela protelando a respectiva saturação, pelo que o adiamento sine die da linha Porto-Vigo não será certamente alheia a esta lógica perversa. A ausência de líderes regionais, a anemia das chamadas "forças vivas" (???), associada à visão paroquial dos autarcas do grande Porto incapazes de se concertarem no essencial, só lhes facilita a tarefa.

Tudo isto acentua o nosso dualismo terceiro-mundista, drena recursos sempre no mesmo sentido em prol de uma crescente "elefantíase" e do aumento das disparidades regionais e fomenta um sentimento de revolta cada vez mais latente, que se pode tornar perigoso, se amanhã alguém lhe souber dar o devido enquadramento político.