Crónica publicada a 30 de Setembro, sábado, no PÚBLICO
«Sete alunos da Escola Secundária D. Inês de Castro, em Alcobaça, foram agredidos por dois jovens do sexo masculino, com 16 e 17 anos, que não frequentam aquele estabelecimento de ensino. O episódio ocorreu na última quinta-feira [21 de Setembro], por volta das 14 horas, mas só ontem [25 de Setembro], foi divulgado pela PSP. O facto da escola não ter portaria facilitou a entrada dos autores das agressões que, segundo a vice-presidente do Conselho Executivo da Escola D. Inês de Castro, Dulce Lopes, são da freguesia de Pataias, no mesmo concelho.»
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Este facto relatado pelo «Jornal de Notícias» na sua edição de 26 de Setembro não tem aparentemente nada de excepcional. As agressões nem sequer foram muito graves sobretudo quando comparadas com outras ocorridas noutras escolas. Mas chamo contudo a atenção para a seguinte frase: «O facto da escola não ter portaria facilitou a entrada dos autores das agressões». Uma escola sem portaria? O que é estranho é que este dado não nos choca. Não deixa de ser peculiar que seguranças e contínuos nos interroguem ao que vamos quando entramos no edifício duma junta de freguesia e que simultaneamente consigamos entrar e sair dumas instalações escolares sem que alguém nos pergunte o que quer que seja.
Várias vezes me tenho interrogado sobre os profundos temores que levarão à proliferação de contínuos e seguranças - não raramente em perfeita duplicação e triplicação de funções - nos mais díspares serviços públicos como as bibliotecas, arquivos, centros de saúde ou até em instituições militares. Contudo inúmeras escolas funcionam sem qualquer controlo de entradas e saídas.
Não duvido que os alunos também podem ser agredidos em plena rua mas também tenho a certeza que uma escola a funcionar sem portaria é uma escola que não deve funcionar.
A ausência de controlo de entradas e saídas nas escolas públicas - e quiçá em algumas privadas mas esse é um problema delas e de quem lá coloca os filhos - é apenas um e nem sequer o mais grave problema do ensino público em Portugal. Digamos que é uma espécie de símbolo daquilo a que se chegou.
Mais do que ser um gigantesco sorvedouro de dinheiro, o ensino estatal constituiu-se em Portugal como um maquinismo de corda que se autonomizou da realidade. O ensino público não vive para servir o público - no caso os alunos - vive para corporativamente se sustentar, o que já não é tarefa de pouca monta dado o gigantismo da estrutura que, em nome da educação, tem sido montada ao longo de décadas e décadas. Mesmo que os alunos se volatilizassem a engrenagem continuaria largos anos em funcionamento, reivindicando sempre mais funcionários.
A escola pública não está concebida do ponto de vista dos alunos, logo um espaço onde existem tempos lectivos, não lectivos, refeições, saídas, entradas... Antes pelo contrário a escola organiza-se segundo a delimitação das obrigações de cada grupo profissional: quem não tem obrigação de vigiar os recreios? Quem não tem obrigação de limpar isto ou aquilo? Quem não tem obrigação de ficar depois das 15h?... Não se trata de trabalhar pouco ou muito. Mal ou bem. Em muitas destas escolas e jardins de infância existem excelentes e dedicadíssimos profissionais. Mas falta a concepção de que a escola só existe se tiver alunos. Que não basta dar uma óptima aula se a seguir ninguém se preocupar com o facto de a escola não ter portaria ou de se praticar um horário absolutamente incompatível com os horários de trabalho das famílias. De igual modo, os conteúdos não estariam transformados numa espécie de ode ao politicamente correcto e muito menos os tempos lectivos seriam ocupados com actividades que apenas resultam na fase de experiência pedagógica, com turmas escolhidas e professores escolhidos em escolas que também não aquelas por acaso.
Por exemplo qual tem sido o saldo global da disciplina que dá pelo nome de Área de Projecto? É certo que devem existir experiências maravilhosas para mostrar em power point nos seminários sobre o que se pode fazer nesta disciplina. Mas na generalidade os conteúdos aí abordados dificilmente ultrapassam uns considerandos vagos sobre assuntos como a vida maravilhosa das baleias ou a roda dos alimentos. Este esvaziamento dos conteúdos penaliza claramente os mais desfavorecidos em termos de saber e de competências para aprender. A substituição das disciplinas em que se transmitem conhecimentos por aquelas em que se modelam atitudes tem o seu expoente na chamada Educação Cívica. Esta disciplina tornou-se numa espécie de exercício de metalinguagem sobre os problemas da turma. Os nossos filhos saem da escola sem saber distinguir os poderes do presidente da República dos do primeiro-ministro mas sabem desde a mais tenra idade que têm problemas, que estão numa turma com problemas e que a escola ela mesma é um problema que não se resolve porque o ministério da Educação não dá esse abstracto indispensável que é necessário para erradicar os ditos problemas. Dir-me-ão que estas tolices curriculares também imperam no ensino privado. É certo que sim mas também é certo que a preocupação em apresentar resultados leva apesar de tudo a alguma moderação. E aqui chegamos ao busílis da questão: a escola pública não muda enquanto não existir liberdade de escolha dentro do universo das escolas públicas e entre estas e as privadas.
Note-se que a simples possibilidade de se escolher a escola pública que se quer é uma excepção. Todos temos vergonha do tempo em que os portugueses eram tão pobres que ensinavam os filhos a mentir quando inquiridos sobre a sua idade nos transportes públicos. Pois agora mentem sobre o local onde vivem de modo a que os seus pais possam escolher a escola pública que querem.
A possibilidade desses mesmos pais dizerem tranquilamente que preferem a escola A porque é melhor do que a B soa a blasfémia e é mais do que meio caminho andado para verem a sua pretensão recusada. Termos como melhor ou pior são absolutamente interditos neste universo. E não só nele. Note-se que a maior parte dos nossos dirigentes políticos e figuras públicas - sejam eles de esquerda ou direita - opta por, nos níveis do básico e secundário, colocar os seus filhos no ensino privado. Jamais dirão que fizeram essa opção porque acreditam que o ensino privado garante melhores resultados mas sim porque «dá mais jeito», «fica mais ao pé de casa», «os amigos também foram para ali»... Às vezes dizem que os horários do público não são compatíveis mas o assunto morre aí mesmo.
E assim os portugueses que pagam caro um sistema público de ensino não só não podem escolher a escola pública que querem - e que oficialmente é gratuita o que levará um extra-terrestre a pensar que se auto-sustenta - como são também gravemente penalizados caso optem pelo ensino privado. O que leva a que não se pondere sequer a possibilidade de o ministério da Educação transferir para a escola pública ou privada indicada pelas famílias a verba que anualmente dispende com cada aluno? Porque se teme que muitas escolas públicas ficassem às moscas. Os nossos filhos estão reféns da máquina.
Helena Matos