7.11.04

O Estado intérprete é uma pessoa de bem?

Num Estado de Direito, as leis, em princípio, apenas vigoram para o futuro. Em amatéria fiscal, este princípio encontra-se ainda mais reforçado. Uma das excepções são as chamadas "leis interpretativas". Por vezes, por má redacção ou incorrecta expressão do "pensamento legislativo", uma norma jurídica pode ter várias interpretações mais ou menos divergentes. Nestes casos, o legislador pode emitir uma nova norma fixando a "interpretação correcta", de entre as várias possíveis, da norma intepretada. A "interpretação autêntica" aplica-se desde a entrada em vigor da norma interpretada (tem efeitos «retroactivos»). Trata-se de um poder que deve ser utilizado com moderação e apenas nos casos em que, de facto, existam divergências interpretativas.

Através da proposta de Orçamento de Estado para 2005 (OE2005), o Governo pretende alterar a "Lei Geral Tributária" (LGT), um diploma estruturante do Direito Fiscal Português, na qual são consagrados alguns dos mais relevantes direitos dos contribuintes.

Um desses direitos é o de participação nos procedimentos que lhe digam respeito, nomeadamente através do direito de audição prévia. Este direito significa, basicamente, que o contribuinte (ou o cidadão) deve ser ouvido antes de ser tomada uma decisão que o afecte.

Uma das situações previstas na lei em vigor consta do artigo 60.º, n.º 1 da LGT:
«1 - A participação dos contribuintes na formação das decisões que lhes digam respeito pode efectuar-se, sempre que a lei não prescrever em sentido diverso, por qualquer das seguintes formas:
(...)
d) Direito de audição antes da decisão de aplicação de métodos indirectos;»

Na proposta de OE, o Governo que alterar a redacção daquela alínea para
«Direito de audição antes da decisão de aplicação de métodos indirectos, quando não haja lugar a relatório de inspecção;» Até aqui (quase) tudo bem. O legislador reduz o direito de participação, limitando o direito de audição, mas fá-lo através do instrumento formal próprio - Lei da Assembleia da República (à qual cabe aprovar o OE2005).

Acontece que, não contente com limitar o direito fundamental de participação, o Governo propõe ainda o seguinte:
«2 - A nova redacção da alínea d) do n.º 1 do artigo 60.º da Lei Geral Tributária, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 398/98, de 17 de Dezembro, tem natureza interpretativa

Ou seja, a nova redacção (limitação do direito de audição no caso de tributação por métodos indirectos aos casos em que não haja relatório de inspecção) vai aplicar-se retroactivamente, excepto nos casos em que haja já decisão definitiva (transitada em julgado).

Neste momento, a administração tributária debate-se com numerosas impugnações de decisões de fixação de impostos por recurso aos tais métodos indirectos, precisamente por falta de notificação dos interessados para o exercício do direito de audição prévia previsto na tal alínea d).

Com esta "interpretação autêntica", pretende o Governo "tirar o tapete" a todos esses contribuintes, retirando-lhes, com efeito rectroactivo - a meu ver prefeitamente ilegítimo - um direito reconhecido há mais de cinco anos.