O post abaixo do meu amigo JM aponta numa linha impulsiva, algo arrivista e provocatória, sendo, nesse plano, bem conseguido (reformulado, com pedido de desculpas a JM).
Não posso contudo deixar de discordar com as imprecisões que encerra. A começar pelo título: onde se lê "Posição liberal sobre o casamento de pessoas do mesmo sexo" deveria ler-se "Posição de um liberal sobre o casamento de pessoas do mesmo sexo".
Seguindo: sendo eu um liberal, não subscrevo o que JM escreve quando afirma não existir qualquer "objecção liberal ao (...) casamento entre seres de espécies diferentes": pese embora não me incomode que o meu amigo JM firme com o seu cão ou com o seu periquito um qualquer acordo de partilha afectiva, e perceba que a afirmação aqui tenha um sentido piedético, discordo que se chame a isso "casamento". É de mau gosto.
O casamento é uma convenção que radica, primariamente, no direito natural, e que mais não é do que a decisão de duas ou mais pessoas viverem em conjunto, constituindo um corpo familiar e assumindo tudo o que ele acarreta, no plano afectivo e material.
A evolução das sociedades e das culturas fez com que esta noção fosse, ao longo dos tempos, e nas mais diversas comunidades, assumindo asserções diversas, ganhando corpos e significações distintas. Assim, em Portugal, como na generalidade dos países ocidentais, casamento é a convenção celebrada por duas pessoas; já em algumas culturas (v.g. muçulmanas), o homem pode casar com mais do que uma mulher, ao mesmo tempo.
Aquilo que na sua génese é uma convenção natural, passou com o tempo a ser um acto jurídico (já desde os primórdios o era também religioso): os esposos assumem, na celebração de um "acto", um dado "estado": esse "estado" acarreta um conjunto de direitos e deveres: quer pessoais (entre os cônjuges) quer, eventualmente, perante a comunidade e uma qualquer divindade.
Assim, um liberal aceita sem dificuldade que a convenção natural - hoje chamada de "União de Facto" - desde que celebrada em liberdade, não deve ser impedida. O que exclui, desde logo, as ligações com os animais, que, obviamente, não são seres dotados de liberdade e, portanto, não são capazes de assumir voluntariamente aquilo que representa o corpo familiar. Mas nada impede, numa óptica liberal, que pessoas do mesmo sexo (colocadas por JM no mesmo nível que as uniões com animais) assumam por convenção natural a construção de um lar.
O que, também, um liberal aceita sem dificuldade (corrigo: alguns liberais aceitam sem dificuldade; outros aceitam, mas com dificuldade) é a liberdade religiosa. Assim, e se alguém quiser casar segundo a sua religião, deve poder fazê-lo sem qualquer impedimento.
A "institucionalização" do casamento civil é que pode ser para um liberal um "non sense", quando apenas tenha por objecto obter da parte do Estado o reconhecimento de um "estado" em relação ao qual estão consagrados "benefícios". Concordo com esta crítica, que subscrevo. A bizarria é tal que, recentemente, assistimos ao "alargamento" deste benefícios aos não casados que preencham, dentro da convenção natural ("União de Facto"), um conjunto de "requisitos" definidos por via legal. Mas nesse plano importa alertar para aquilo que é também a recorrente penalização das famílias. Veja-se, a título de exemplo, aquilo que é a chocante oneração fiscal da aquisição de habitação, onde a neutralidade exigida por JM - aqui, em sentido inverso - também não existe.
Mas mesmo neste contexto de "institucionalização do casamento civil" o que se discute numa óptica liberal é mais a consagração de certos "direitos", e não propriamente a convenção em si. É que, culturalmente, o reconhecimento social da união pode ser importante, e poderá em muitas comunidades ser razoável que este seja assumido pelos poderes públicos.
A palavra "casamento" pode ter diferentes cargas semânticas, em função do tempo, do espaço e da cultura; contudo, à noção de casamento não corresponde a não-significação que JM lhe atribuiu, e que leva à sua descaracterização total e absoluta.
Rodrigo Adão da Fonseca