25.8.05

Carta Aberta a Helena Matos

Cara Helena,

Maria João Seixas escreve-te no Público de ontem [«Carta Aberta a Helena Matos», link, como habitualmente, não disponível]. À noite, como se impõe, escrevi-te esta carta. Hesitei, como é da praxe, em a enviar; em bom rigor, não nos conhecemos. Depois de meditar um pouco, e de ler a aceitação que o texto de MJS recolheu em certos meios, achei por bem lançá-la aqui no Blasfémias.

Fiquei a saber que a tua carreira, malandra, no seu início, foi amadrinhada por MJS, ou pelo menos ela está convencida disso, ao ponto de te cobrar essa factura assim publicamente: «Convidei-te para estares comigo e com os convidados, frente às câmaras», ainda andavas tu nos bastidores a fazer pesquisas, longe das luzes da ribalta, «e o programa ganhou com a tua participação». Só que o tempo de antena acabou, e tu, «Querida Helena» - como carinhosamente MJS se te dirige - ganhaste asas. Tiveste, contudo, a veleidade de, escrevendo bem - pasme-se - escolher «um ponto de vista cada vez mais avesso ao» de MJS, «mais afastado na cartografia do olhar, do pensamento, da emoção».

MJS pensava que eras uma pomba branca. Talvez, por isso, te amadrinhou. É que, lendo e relendo a carta que te envia, fico com uma dúvida: o que contou decisivamente foi o teu valor intrínseco, ou a convicção de que marravas cegamente à esquerda?

Só que o teu pensamento, cara Helena, e como aponta MJS, é «mais evolutivo» do que o dela. Com outra diferença: segundo a própria, o seu pensamento

«tem sólidos alicerces de fidelidade (...) a ideias e princípios que [a] marcaram desde a adolescência e que, nem os desvios dos homens, que deles também se reclamam, nem os atropelos da história, que por eles invocam sem consequência, conseguem macular [nela], a bondade do seu valor matricial (...)».

Bem sei que estou a tentar interpretar um texto de mulher para mulher; daí que me seja algo difícil compreender, exactamente, o que subjaz a esta carta, intimista, onde MJS, antes de te esfaquear, te elogia, te cobra, desabafa sobre as suas utopias e dúvidas existenciais e religiosas: Terá mesmo Nossa Senhora subido aos Céus? E Che Guevara? Tê-la-á acompanhado?

A linha de pensamento de MJS é de facto, curiosa: o seu catolicismo é fundado num «saber "claramente sabido"»; «não praticante, nada ortodoxa», com uma fé fundamentada «no mistério dos "mistérios", não nos dogmas», seja lá o que tudo isto for; por isso, acede a mais um feriado religioso, mas «sem imaginar Nossa Senhora a subir nuvens adentro».

Compreensível, pois quando olha para o Céu, MJS vê, não a Virgem em ascensão, mas a Sierra Maestra, portadora de «uma luz libertadora e exemplar». O movimento aí nascido, esse sim, «um marco de referência na história do século XX», tem um brilho próprio: ora, «o momentum dessa luz» não é apagado pelo «que aconteceu depois em Cuba, com a implantação de um regime ditatorial e injusto para o povo cubano», ainda que, provavelmente, MJS não ignore que os perpretadores da injustiça tenham sido precisamente os mesmos protagonistas e actores da Revolução, todos eles pertencentes ao grupo da Sierra Maestra. MJS quer-nos fazer crer que há em tudo isto «uma prova da fidelidade e de respeito pelo que aconteceu, quando aconteceu, como aconteceu».

A forma como uma certa esquerda valoriza a «fidelidade» na asneira é algo que me ultrapassa: tudo isto, para mim, pode não ser culpa dos «dogmas» de quem diz que não os tem, certamente, mas que é um «mistérios dos "mistérios"», é!

Andaste a bater-te - literalmente, de arma em punho - nos anos quentes do vinte e cinco de Abril? Foste uma inimiga da liberdade, querias que Portugal se tornassse um regime democrático ao bom estilo da Sierra Maestra?

Se andaste, e hoje és o que és, escreves o que escreves, combates com a pena os teus antigos companheiros de armas,«evoluiste», então sê bem vinda, expiaste já - e bem - os teus pecados. Nunca é tarde demais para abandonar certos delírios. Se é uma calúnia que te fazem, tanto melhor. Isso, pouco interessa agora. O que é triste é olhar e ver que ainda há, nos dias de hoje, quem considere nobre manter a cegueira, defendendo, usando Shakespeare para o justificar, um «sonho» que para a Humanidade, mais não foi - e ainda é, em algumas partes do mundo - que um terrível pesadelo. Posso não perceber nada de Shakespeare, de Teologia, do Che Guevara nem do Fidel, nem compreender, também, a cabeça de certas mulheres, mas uma coisa sei: O maior cego é aquele que não quer ver.

Com profunda admiração,
Rodrigo Adão da Fonseca