27.8.05

Paradoxos: a confusa relação com a "corrupção"

Temos uma relação estranha e problemática com certos fenómenos e comportamentos.

Por exemplo - e na sequência da polémica gerada pelas declarações de Paulo Morais, o vice-Presidente da C.M.P. que disse aquilo que todos sabemos - não é compreensível a forma como, de um modo geral, em termos colectivos, reagimos aos casos de corrupção!
Corrupção efectiva ou meramente aparente, denunciada ou comprovada judicialmente.

Num país em que se ouve recorrente e informalemnte dizer, precisamente a propósito de certos autarcas "históricos" ("dinossauros do poder local"), que o fulano ou o sicrano "roubaram, mas fizeram obra" (como se uma coisa tivesse alguma coisa a ver com a outra ou ainda, como se não fosse possível fazer obra sem roubar!!), o certo é que quando se denunciam mais ou menos abertamente essas mesmíssimas situações, surgem logo os pedidos veementes e pudicamente escandalizados, de provas, necessariamente irrefutáveis e documentais!

Por outro lado, paradoxalmente, vê-se corrupção e escândalo onde o que existe mais não é do que uma situação naturalmente previsível, sem qualquer ilicitude, nem sequer - salvo melhor opinião - qualquer imoralidade!

Assim, por exemplo, foi notícia de destaque nos noticiários da SIC a venda de senhas para consultas médicas no Centro de Saúde da Marinha Grande. O tom utilizado foi sugestivo de um imenso escandalo, envolvendo, inclusivamente, os Directores e demais entidades que tutelam o funcionamento de tal Centro (ARS)!

Na realidade, o que se noticiou corresponde apenas a uma situação normal, em que existe uma necessidade (criada pelo próprio funcionamento do dito Centro de Saúde, onde marcar uma consulta corresponde, em média, a um tempo de espera de 3 a 4 meses!!) e houve alguém que, muito natural e empreendedoristicamente, resolveu prestar um serviço que corresponde à satisfação da dita necessidade! Nada mais do que isto; natural e unicamente, trata-se doo mercado a funcionar!

Se escandalo há, ele está não no facto de se venderem senhas para consultas (a quem não pode esperar 3 a 4 meses e não se quer sujeitar a passar uma noite inteira ao relento para conseguir uma marcação para o dia seguinte!), mas sim no próprio funcionamento (péssimo) de tal Centro de Saúde!!!

Portanto, o título da peça jornalística em questão deveria ser, em rigor, "Centro de Saúde só disponibiliza consultas médicas após 3 ou 4 meses de espera" e não "Negócio à porta do Centro de Saúde da Marinha Grande". Note-se «Negócio» - oh! horror! - essa palavra diabólica, que cheira a capitalismo, lucro, ultra-liberalismo, etc., etc...