26.8.05

Corporativismos

Os leitores regulares do Blasfémias já se terão apercebido que eu tenho um especial interesse pelas questões da Saúde.

O sector da Saúde - à semelhança de muitos outros em Portugal, é certo - sofre, entre outras, de uma doença crónica: à laia de uma suposta defesa do «interesse público», acomoda uma teia complexa de benefícios que servem, sobretudo, aqueles que vivem encrostados ao sistema: médicos, enfermeiros, pessoal auxiliar, fornecedores, administradores hospitalares.

Não estou com isto a questionar o papel que, individualmente, cada um desempenha: há, certamente, por este país fora, milhares de profissionais dedicados que exercem a sua profissão com zelo.

Certo é, contudo, que a actuação concertada, corporativa, que se impõe com relativa facilidade ao Estado, num sector onde as regras de funcionamento do «mercado» têm um alcance muito limitado, conduz a que hoje, neste universo, certas profissões sejam atractivas pelas piores razões, e o ambiente que aí se respira, em alguns aspectos, seja mesmo muito pouco saudável.

Por causalidade, conheci hoje um blog, chamado Saúde SA. Não se enganem, pois o nome aponta precisamente para o oposto que a sua designação aparente indicia.

Neste blog, faz-se uma apologia dos Administradores Hospitalares, como sendo uma espécie de «anjos» zeladores da Saúde em Portugal, uma classe desinteressada e altamente competente, que tem como único objectivo a defesa do SNS [os itálicos nas citações são meus]:

« (...) SaúdeSA não é um projecto jornalístico, muito menos literário. Defendemos um projecto de crescimento e aperfeiçoamento do SNS de acordo com alguns modelos devidamente testados da EU. Somos da Saúde e falamos com conhecimento de causa. Não podemos ter, evidentemente, a perspectiva dos investidores privados interessados em realizar rapidamente lucros elevados e em segurança numa área social que requer protecção especial do estado. Não somos da maçonaria, Opus Dei ou de qualquer outra sociedade secreta ou seita. Somos independentes do poder político, APAH, lóbis da saúde e fontes privilegiadas (...)».

Mais adiante, sente-se e lê-se claramente qual o modelo defendido pelo Saúde SA:

«(...) Tenho aqui referido aquele que é considerado pelos parâmetros da OCDE o melhor sistema de saúde do mundo - o francês - o único, não sei se será por este motivo que é o melhor, que aposta na Saúde com o espírito de serviço público e tem como seu actores principais, no âmbito hospitalar, administradores hospitalares de carreira, formados numa Escola Nacional de Saúde Pública (de Rennes) em que se decalcou a nossa Escola e a nossa carreira (...)».

E qual tem sido então o problema da Saúde em Portugal?

«(...) A única diferença em relação àquilo que se passa em Portugal, não diria desde há 30 anos, mas sim desde 1988, com Leonor Beleza, é que não só o SNS tem vindo a ser ferido de morte como os Administradores Hospitalares foram afastados dos centros de decisão nos hospitais. Essse tem sido o principal problema da saúde em Portugal (...)».

Pois. E qual a solução que estes digníssimos senhores apresentam para ultrapassar este problema?

«(...) Criação de um grupo ad hoc [espécie de uma bolsa de candidatos como já existe entre nós, ao menos em alguns hospitais] de 200 a 300 pessoas [administradores hospitalares], destinado a alimentar as vagas de administradores hospitalares do 200 maiores hospitais (...) Paralelamente, o processo de nomeação dos administradores hospitalares deveria ser simplificado (...) Os administradores hospitalares adjuntos, que são os quadros de administração hospitalar que nos hospitais não têm a responsabilidade da administração principal do estabelecimento, poderiam ser recrutados pelo administrador principal do estabelecimento [depois de publicação da vaga]. Para os lugares de administrador principal do estabelecimento (...) os candidatos serão examinados pelo Conselho após publicação da vaga pelo Conselho Nacional de Gestão da Carreira de Administração Hospitalar. Pronto para a nomeação, o Conselho de Administração do hospital dará o seu parecer ao Ministro, que nomeia (...)».

Isso mesmo! Os administradores Hospitalares organizam-se, nomeiam-se entre si, e no fim, o Ministro, assina! Grande! É importante que os nossos leitores percebam que é condição de acesso à carreira de Administração Hospitalar a frequência de um curso que - por imposição legal - apenas é ministrado pela Escola Nacional de Saúde Pública, a qual, por seu lado, apenas forma vinte e cinco alunos por ano, e cujo acesso está integralmente nas «mãos» da ENSP...

Significa isto restringir o acesso à gestão a um grupo bem definido, formado numa escola específica, com critérios de admissão próprios; desde a admissão à ENSP, até à colocação e à promoção, tudo seria gerido em regime de auto-tutela, dentro da «classe». Sim senhor. Belo modelo.

O actual Ministro, Correia de Campos, é professor catedrático da referida escola. Um dos seus Secretários de Estado, Francisco Ramos, bem como o Presidente da Associação dos Administradores Hospitalares, Manuel Delgado, também leccionam na ENSP. Ainda assim, parece que, na opinião dos dinamizadores do SaúdeSA, tal não é suficiente, Correia de Campos não estará a ser um grande amigo dos seus amigos. Basta ler, para esse efeito, o post «Afinal, para que serve Correia de Campos?»:

«(...) Como político, tem-se revelado o desastre que já se receava (...) O Professor esquece-se que está a falar para elites esclarecidas! (...) Como Professor de Administração Hospitalar, não soube até agora honrar a Escola Nacional de Saúde Pública, ao não valorizar a carreira de Administração Hospitalar nem os Administradores Hospitalares (...) Os Administradores Hospitalares são formados por si, com a expectativa de virem a exercer no Ministério da Saúde, as funções dirigentes para que são preparados (...) são um capital humano e técnico de relevo que está a ser criminosamente malbaratado em funções em muitos casos acintosamente humilhantes (...) Para quê ir buscar gente fora do sistema (...) Há que retomar o princípio do "interesse público, legalidade e mérito" na Administração Hospitalar e na carreira de Administração Hospitalar (...) Manter tantos gestores na Administração de topo dos Hospitais, é brincar com os nossos impostos, pensar que a venda livre de medicamentos vai resultar em poupança para o Estado, é ingenuidade económica, como já se está ver nas movimentações que a ANF está a desenvolver (...) Como homem, está a perder muitos amigos e a não ganhar nenhum (...) Contudo, ainda está muito a tempo de arrepiar caminho! (...)».

Não me vou alongar mais, porque este post vai bem comprido. Penso, aliás, que nem sequer precisam dos meus comentários. Recomendo, contudo, a quem se interessa por estas matérias, como o nosso grande amigo José Sarney e o Mário Baptista do DE (um jornalista cujo trabalho sério vale a pena seguir), uma ida ao blog SaúdeSA, e uma passagem dos olhos pela caixa de comentários, alguns bastante esclarecedores.

Já agora, aos senhores do SaúdeSA: podem estar certos quando dizem que Correia de Campos está, como homem, a perder muitos amigos; enganam-se redondamente quando pensam que não está a ganhar nenhum: eu, pessoalmente, entro nessa lista, não tanto dos amigos, pois não tenho o prazer de conhecer o Ministro mas, até agora, dos admiradores; e estou certo que aqui no Blasfémias mais gente, depois de ler tudo isto, verá com mais simpatia um dos poucos Ministros deste governo que se preocupa apenas em fazer o seu trabalho. Receio, infelizmente, que vá durar pouco...

Ainda há em Portugal quem tenha medo de actuar segundo as regras mais básicas do mérito, do mercado e da concorrência.

Rodrigo Adão da Fonseca