25.8.05

OS FILHOS DE D. JOÃO VI



Quando, em 26 de Maio de 1834, é assinada em Évora-Monte a Convenção que lhe adoptou o nome e que pôs termo à guerra civil iniciada, em actos, três anos antes, foi o fim de um mundo antigo e o nascimento de um outro novo e diferente que aí se pretendeu ter tido lugar. E, contudo, os termos acordados da paz aparentavam que nada de significativo se passaria. Magnânimo, naquele que foi provavelmente o gesto mais nobre de toda a sua vida, D. Pedro ofereceu a normalidade do regresso ao lar aos partidários de seu irmão, em troca da deposição das armas e do fim das hostilidades. Não confiscou bens, nem expropriou propriedades, não mandou matar, não prendeu ninguém, pelo contrário, amnistiou todos os prisioneiros políticos, e aos militares que tinham combatido no lado oposto da barricada manteve os postos e as patentes que possuíam. Ao seu irmão, o «usurpador» Miguel de Bragança, o chefe simbólico dos «malhados» ofereceu o exílio e uma pensão anual de sessenta contos, que o próprio, mal chegou a Viena, recusou, para poder livremente reclamar o seu direito a dispor de trono de que se considerava despojado.

Talvez fosse, porém, esta a condição necessária para que os vencedores pudessem lograr a aceitação de uma Nação que, nos anos anteriores, os rejeitara por temor e convicção, e se submetera ao «Portugal Antigo» que D. Miguel representava. Provavelmente Saldanha e Terceira, militares que eram e que, na sua condição de condottieri vencedores, negociaram a paz, não estivessem inteiramente cientes desse estrito imperativo, tendo-o acordado com Azevedo Lemos apenas para satisfazer as necessidades do momento. Mas Palmela, diplomata e político moderado, não tinha quaisquer dúvidas a esse respeito, nem ignorava que qualquer outra solução que ficasse aquém disto estaria condenada ao fracasso e a reavivar, num futuro não muito distante, as divisões que tinham levado à guerra. Palmela aprendera por experiência própria, com o exílio e as duras campanhas militares, que nem os ditos «liberais» vencedores formavam uma unidade política, nem tão pouco tinham um líder que a pudesse impor, e muito menos uma ideia para o País que acabavam de conquistar. Pelo contrário, ele não duvidava também que, na sua simplicidade e até mesmo bruteza, o que levara a Nação a render-se a D. Miguel é que ele próprio incorporava um ideal de País que indubitavelmente liderara.

Entretanto, o D. Pedro regressado do Brasil comprovara o pior que de si se suspeitava pudesse vir. Vaidoso, arrogante, não tinha qualquer ideia para o País, muito menos qualidades de chefia que pudessem assegurar-lhe um futuro. Chegara ao comando, quase sempre, em campanha, fictício, do exército dito «liberal» por exclusão de partes, privado que fora do Império do Brasil que, um dia, alguém o fez acreditar que tornara independente. Durante meses a fio, Palmela e muitos outros, insistiram com o Imperador do Brasil para que assumisse os seus «direitos» à coroa portuguesa e as correspondentes responsabilidades, em vez de dela abdicar a favor da sua filha, o mesmo é dizer, do seu irmão. D. Pedro não queria saber e, na sua particular visão do Bolívar transcontinental que se considerava, de libertador de povos, aristocrata e filho de Reis, enfastiava-se quando lhe falavam da questão portuguesa que, para ele, com a Carta, com D. Miguel e D. Maria, estaria resolvida. Quanto ao mais, que o não incomodassem no gozo dos seus direitos imperiais em Terras de Vera Cruz.

Não existia, portanto, verdadeiramente um «movimento liberal», mas apenas uma questão política com raízes antigas, que separava os partidários dos direitos de D. Miguel, então uma gigantesca maioria, de uma reduzida minoria que estivera envolvida na revolução de 1820, ou que a ela acabara por aderir mais ou menos suavemente, e que se sabia excluída do poder com o regresso daquele. Palmela não desconhecia que qualquer ideia de união entre os «liberais», mesmo com D. Miguel no poder, era uma pura ilusão: os desentendimentos com a Junta Revolucionária do Porto, em 1828, o cobarde e patético episódio da Belfastada, o exílio forçado, em condições desumanas, dos mais de dois mil e quinhentos soldados que se envolveram nessa tentativa de golpe, atirados literalmente para os armazéns nauseabundos de Plymouth e o desinteresse com que os «chefes» seguiram o seu destino, demonstravam-no à saciedade. Mas, não fora isso suficiente, havia ainda os muitos episódios da guerra civil, onde verdadeiramente não existira um comando, mas vários, à medida dos diversos chefes que se iam afirmando como tal. E, depois, havia Saldanha. Saldanha, o jacobino. Saldanha, o revolucionário. Saldanha, o amigo de Lafayette e o inimigo da legitimidade dinástica. Saldanha que D. Pedro impedira de se juntar à expedição «libertadora» do Reino que desembarcara no Mindelo, e cujo regresso só aceitou já em pleno cerco do Porto, em estado de absoluto desespero e de quase rendição, esperançado nas suas qualidades de militar que ele, de resto, confirmaria plenamente à revelia do comando do Príncipe. Ele representava o «outro lado» do «liberalismo», o vintismo republicano e avesso ao princípio monárquico que a Carta de 26 pretendia impor. Saldanha pretendia, ou julgava pretender, um outro tipo de regime que D. Pedro e os seus seguidores expedicionários execravam, sentimentos que ele e os seus retribuíam plenamente. Foi contudo ele, como atrás ficou já dito, quem acabou por negociar as condições da rendição dos exércitos miguelistas em Évora-Monte. Quanto aos restantes «liberais» que compunham o exército «libertador» eram muito poucos. Pelo menos, os portugueses, já que a esmagadora maioria das chefias e da soldadesca era constituída por mercenários vindos dos quatro quantos da Europa, pagos a peso do ouro de Mendizábal. O «movimento liberal» não existia e Palmela sabia-o.

Perante este cenário, não é de estranhar que o «Portugal Novo» de 34 tenha sido mais imposto aos portugueses, do que propriamente recebido entusiasticamente por eles. Aliás, o próprio D. Pedro, já numa fase em que começara a suspeitar de que não se chegaria a si mesmo para retirar o «usurpador» do poder, pedira aos «seus» súbditos do Reino, na proclamação que lhes dirigiu no desembarque, que eles o não obrigassem a empregar a força para os libertar. De facto, entre um «Portugal Novo» e estrangeirado, sem ideias firmes e assentes, sem liderança nem comando, dividido em grupos e por seitas, e o «Velho Portugal» estamental e absolutista, proteccionista e paternal, os portugueses, como sempre, não hesitaram: escolheram o último e só no fim aderiram em número significativo ao partido vencedor que os viera «libertar». Na verdade, pode dizer-se que a liberdade burguesa foi mais imposta do que desejada.

Por isto, a instauração do regime dito «liberal» em Portugal não se trata senão de um equívoco. Como foi também um logro o seu desenvolvimento ao longo do século e daquele que se lhe seguiu: despesismo público, o chamado «devorismo» das elites reinantes, a sucessão de ciclos de radicalização jacobina com os de ditadura política e financeira, o crescimento galopante do sector público sobre o privado, do Estado sobre uma sociedade civil que verdadeiramente nunca existiu. Já no século XX, a maior parte da I República assumiu o pior do vintismo socialista, despesista e regulador, enquanto que o salazarismo, de algum modo, representou o retorno ao «Velho Portugal» tradicionalista, autoritário, onde as corporações substituíram os estados sociais e a Câmara Corporativa se assumiu representativa das ordens sociais e não dos partidos de «dividem a sociedade». Quando, hoje, nos queixamos da «ingovernabilidade da pátria» e não sabemos como a superar, quando reclamamos pela falta de elites esclarecidas que nos governem, da ausência de uma ideia para o País, e se diz já que o regime representativo dos partidos corre o risco de se esgotar nas suas próprias contradições e insuficiências, e que é necessária uma «ditadura financeira», é do regresso do «Velho Portugal» de que verdadeiramente sentimos falta. Inequivocamente, a revolução liberal portuguesa nunca existiu. Se ela tem tido efectivamente lugar, não lhe sentiríamos, nos dias de hoje, a falta. Continuamos, todos sem excepção e para nossa colectiva desgraça, a descender de D. Pedro e de D. Miguel. De algum modo, também nós somos «filhos» de D. João VI.