20.10.05

ANÍBAL E OS ELEFANTES



1. Ao fim de trinta anos de regime democrático, a direita portuguesa não sabe estar no poder sem Aníbal Cavaco Silva. Como não soube, antes do 25 de Abril, estar no poder sem António de Oliveira Salazar. A falta do líder, do pater familiae, do tutor desorienta-a, confunde-a e lança-a no disparate e na autofagia, conforme se viu com os breves consulados de Marcello Caetano, Durão Barroso, Santana Lopes e Paulo Portas. A verdade dos factos, daqueles que nos tocam pela proximidade do tempo, é que a direita deu um lamentável espectáculo quando, sem mérito nem glória, ganhou à tangente umas eleições a um partido que dias antes desertara do governo do país. Dizer, como agora se tem dito, que «a direita não estava preparada para governar», é fraco consolo e desabona-a: se não estava, que não fosse; se não se sentia capaz, tivesse confrontado o Partido Socialista e o Presidente da República com as suas responsabilidades e obrigasse-os a cumprir a legislatura até ao último dos seus dias, enquanto se dedicava ao esotérico exercício de estudar a arte da governação.

2. A verdade é, porém, outra. A direita portuguesa, como a generalidade das direitas, aprecia o comando e a chefia determinada, porque, em bom rigor, não concebe o poder político como uma emanação humana, mas como algo que provém das divindades. Por isso, teme-o e julga-se incapaz de o alcançar sem a existência de um mediador entre os simples humanos e os poderes do além. Um chefe político para a direita portuguesa tem de ser um guru, um sábio, um carismático, um homem de autoridade, em suma, um ungido pelos deuses. Não lhe bastam os homens comuns e vulgares, porque, verdadeiramente, ela não acredita que eles saibam dominar a oculta ciência do poder, desprezando-os por essa razão. Qualquer candidato a líder que se preze terá, para a direita do nosso país, de aparentar gravidade, cerrar a expressão do rosto, falar grosso e dizer que é portador de uma indomável vontade de fazer coisas, muitas, muitas coisas a bem da Pátria que somos nós todos.

3. Por isso, a candidatura do Professor Cavaco Silva, hoje apresentada no faraónico mausoléu de Belém, será um bálsamo para a direita portuguesa e para o país em geral, tão carente de autoridade e da gravitas do homem que, um dia, abnegadamente abandonou as delícias de Boliqueime para nos salvar. Hoje, ao comemorar trinta e um anos de feliz matrimónio, ele anunciará ao país que após uma longa meditação partilhada com a família, convencida a sua reticente Esposa, prescindirá de dez anos, os próximos dez anos, do remanso do lar para, uma vez mais, ajudar à nossa salvação. Não dirá expressamente que nos vai salvar, obviamente, porque essa heróica tarefa cabe, em Portugal, por enquanto, ao governo da Nação, mas é isso que se subentenderá. Como, também é o que, na verdade, todos esperamos que ele faça.

4. Como não podia deixar de ser, a candidatura de Cavaco está a pôr a nossa classe política com tonturas cerebrais. Sobretudo na direita dos partidos, onde o temor é que o chefe regressado a casa não goste do que vai encontrar e corra tudo à vassourada. Ontem mesmo, o Dr. Telmo Correia manifestava na televisão esse receio, dizendo que, com a eleição de Cavaco, se corria o risco da presidencialização do regime e de uma modificação do sistema eleitoral que podia levar à extinção do CDS. O Dr. Telmo propunha, para diminuir semelhantes malefícios, que a direita avançasse com mais um candidato, para mais tarde, numa possível segunda volta, negociar estas e muitas outras coisas com o Professor Cavaco, homem a quem as qualidades negociais são sobejamente reconhecidas.

5. Triste medicina, para males tão profundos e pacientes tão depauperados. É que, se o presidencialismo careceria de uma revisão constitucional que o proclamasse, ou de uma ruptura constitucional por via de um referendo ou de um plebiscito, situações muito pouco prováveis de sucederem, a extinção do CDS é já um facto indesmentível e palpável (ou impalpável, se quisermos ser rigorosos), como se pode bem concluir das últimas eleições autárquicas. Ou antes: o pouco que restou diluiu-se no PSD, para grande alegria dos candidatos diluídos, e esse será o caminho a seguir, se aquele partido aceitar e se o Presidente Cavaco o vir com bons olhos.

6. É certo que, nestas coisas, tal como no clássico de Lovecraft também «os mortos podem voltar» (tradução portuguesa do célebre The Case of Charles Dexter Ward). O CDS esteve politicamente morto durante quase vinte anos e renasceu com o Dr. Paulo Portas. Talvez daqui por outros vinte, trinta anos, mais ou menos, quem sabe, volte ao governo por um ano ou dois. Se as (muitas) cabeças pensantes que andam pelo partido não entrarem em desespero existencial e não resolverem fazer hara-quiri, divertindo-nos a todos com um qualquer número circense, como seria a candidatura presidencial do Dr. Paulo Portas, a par das de Jerónimo de Sousa, Louçã, Garcia Pereira e a Dª Carmelinda. Esse prestável serviço à Nação será seguramente melhor protagonizado, à direita, por figuras neste momento mais carismáticas, como, por exemplo, o Dr. Manuel Monteiro, que deve andar a dar voltas à cabeça para arranjar argumentos que lhe permitam candidatar-se contra o Doutor Cavaco, em quem ele via há pouco tempo o «príncipe perfeito» do regime presidencialista que sonhara para Portugal.
Quanto ao resto, façam como Roma fez aos elefantes daqueloutro Aníbal, o cartaginês: deixem-nos avançar e, se tiverem estômago para tanto, devorem-nos. Verão que, ao fim de uns tantos, as digestões até se fazem com alguma facilidade e os bicharocos nem sabem assim tão mal.