17.10.05

E SE SÁ CARNEIRO NÃO TIVESSE MORRIDO?



1. Com a honrosa excepção de um breve período dos governos de Aníbal Cavaco Silva, quando a conjuntura internacional e algumas medidas tomadas permitiram que o país se desenvolvesse, Portugal tem vivido em crise permanente ao longo dos mais de trinta anos que leva já a III República.
Em homenagem à verdade histórica, diga-se que a crise portuguesa tem raízes mais profundas, que em muito ultrapassam esse limitado ciclo recente da nossa vida colectiva. Efectivamente, se tivermos em atenção todo o século XX anterior a 1974, constataremos que o país não se desenvolveu, ou pouco se desenvolveu se comparado com os demais países europeus, como sempre teve sobre si o espectro da ruptura financeira, que, de resto, justificou por si só um regime autocrático de quarenta anos.
Antes ainda, ao longo do século XIX, o panorama não foi muito melhor: invasões militares, guerra civil, partidarização excessiva da vida política e o «devorismo» dos recursos nacionais que lhe esteve associado, instabilidade governativa e institucional, com a questão da natureza monárquica ou republicana a tomar conta do último quartel da centúria.
Pode dizer-se sem medo de errar, que Portugal viveu pelo menos os últimos duzentos anos em crise económica profunda, que lhe condicionou o desenvolvimento e o bem-estar da população, originando um mal-estar social grave. Portugal é um país pobre, que foi perdendo as sucessivas oportunidades que a história lhe foi dando para melhorar, ou, vá lá, para conter o ciclo de empobrecimento. No período de tempo em causa, essas oportunidades foram o Brasil, a África e as Comunidades Europeias. Em nenhum dos três casos soubemos aproveitar as potencialidades que o destino nos colocou e, por isso, chegámos sempre mais pobres ao fim de cada um desses momentos.
Acontece que, quando os povos e as sociedades não se bastam a si mesmos, frequentemente recorrem à figura tutelar do «salvador da pátria», do «homem providencial» que há-de fazer por nós aquilo que nós somos incapazes de fazer por nós próprios. No século passado, à sombra do qual continuamos a viver a nossa vida política, esses homens foram, pelo menos, quatro: Afonso Costa, António Oliveira Salazar, Francisco Sá Carneiro e Aníbal Cavaco Silva. Dos dois primeiros e do último conhecem-se a obra, as decisões, os erros, em suma, a história. De Francisco Sá Carneiro tudo, ou praticamente, ficou por saber.

2.Sá Carneiro «mostrou-se» como político, mas sobretudo enquanto opositor ao regime de Marcello Caetano e, depois do 25 de Abril, ao PREC e ao socialismo de Mário Soares. A sua acção como governante foi interrompida prematuramente, praticamente no começo, pelo que não poderá ser feita qualquer avaliação substantiva da mesma. Porém, não custa nem ofende tentar imaginar o que teria sido a sua vida política.
Sá Carneiro dizia-se, ainda no consulado marcellista, «liberal». Obviamente que, ao tempo, a expressão não tinha na política portuguesa o conteúdo ideológico que hoje lhe damos. Ser, nesse tempo, «liberal» era definir-se por antinomia em relação ao regime autoritário vigente. Um «liberal» defendia a liberdade de expressão, a existência não condicionada de partidos políticos e de eleições, o fim da polícia política e da censura, e a aproximação aos modelos sociais e económicos da Europa Ocidental, isto é, comunitária. Não envolvia qualquer programação relativa às funções do Estado, nem esse era, à época, tema sobre o qual se meditasse.
Quando veio o 25 de Abril, Sá Carneiro disse-se «social-democrata». Também aí e embora ele afirmasse o contrário, a verdadeira social-democracia, reunida na Internacional Socialista, não o reconheceu como tal. Esse estatuto ficaria reservado ao PS de Mário Soares, com quem, de resto, a «Europa» tivera e mantinha relações privilegiadas. De modo que, nessa altura, Portugal era o único país da Europa democrática em que a alternância política se adivinhava entre dois grandes partidos que se afirmavam da social-democracia e do socialismo democrático: o PS e o PPD, mais tarde, PPD-PSD. À esquerda, o Partido Comunista, à direita, a democracia-cristã reunida no CDS, ambor reduzidos a franjas limitadas de eleitorado.
Esta bizarra situação só se começou a desvanecer quando Mário Soares assume a chefia do I Governo Constitucional. Na verdade, Sá Carneiro ofereceu-lhe muito cedo oposição, porque considerou o seu governo pouco «liberalizador» da sociedade portuguesa. Quando a Aliança Democrática chegou ao poder, o seu programa de reformas vai precisamente no sentido de limitar o sector público do Estado e devolver à sociedade civil as suas funções naturais de que fora espoliada. O fim da malfadada reforma agrária e a devolução das terras aos seus anteriores proprietários, foi um passo importante e simbólico, pelo respeito que a propriedade merecia ao novo governo, quer pela intenção explícita de colocar o Estado dentro de limites determinados.
Calcula-se que, em seguida, se seguiriam outras reformas de igual sentido, provavelmente as que Cavaco Silva fez uma década depois. Porém, como várias vezes reclamou, Sá Carneiro encontrava-se refém de uma Constituição que não lhe permitia actuar como entendia, limitado por um poder presidencial que se tinha como um dos pilares do sistema de governo e, por isso, ele reclamava a urgente revisão da Constituição e a eleição de um outro Presidente da República. Neste último caso, apostou na candidatura de um militar prestigiado ? o General Soares Carneiro ? e anunciou que se demitiria caso o seu candidato perdesse as eleições.

3. O seu mito pessoal é tão intenso que deixou o país sem saber o que faria no dia seguinte à derrota presidencial. Sá Carneiro morreu no fim da campanha e nem isso provocou qualquer reviravolta emocional no resultado das eleições. O que teria feito Francisco Sá Carneiro com a sua demissão anunciada ninguém poderá dizer. Freitas do Amaral, seu Vice-Primeiro Ministro, referiu que os dois tinham planeado afastarem-se da vida política activa. Não é, diga-se, pelo menos no que toca ao falecido Primeiro-Ministro, uma hipótese que se possa levar muito em conta. Sá Carneiro tinha a paixão da política e, como todas as paixões, só a morte lhes põe termo. O que ele teria feito a seguir é um enigma. Como se teria relacionado com Mário Soares, com o próprio partido a que presidira e que fundara, com a integração comunitária, com a evolução do mundo, nomeadamente, com o ciclo conservador que se iniciou na Grã-Bretanha e nos EUA ao tempo da sua morte, ficou por saber-se.
Como, também, a morte chegou a tempo de perdurar o seu mito e de lhe não pôr fim. Nos últimos duzentos anos de Portugal, Francisco Sá Carneiro foi o único «homem providencial» que o país não tratou de desmentir.