14.11.05

Viagem sem Regresso

Recordo minuto a minuto
a tomada da Bastilha
o vento fingindo ser natural
o interior ressequido das palavras
e o Sena que me olha
enquanto corre para o mar.

Quadros da história de um país desconhecido
mães inúteis
parindo nuvens.

Da lua
o espesso veludo
envolve-nos.
E as mãos que descem como gotas da chuva
arrasam cidades.

No espaço imenso
o que não está por acaso
está por engano.

Áfricas, 67
Cruzeiro Seixas, Viagem sem Regresso, p. 104, 2001, Tiragem Limitada, Edições de Arte, Lda.

Livro na mesinha de cabeceira; leitura nocturna, fruto do acaso; Cruzeiro Seixas diz que são fictícias as datas dos poemas. Poderia, penso eu, ser Paris em 2005?.

Talvez não. A poesia de Cruzeiro é surrealista, são fragmentos de um mundo imaginário, frutos da liberdade de espírito onde as palavras se recriam e nos projectam um mundo ideal, recheado de símbolos, carregados de significado.

Talvez não, e esteja eu ainda a ver sombras, peso da minha vida vivida, demasiado agarrado ao quotidiano, incapaz de fazer as pontes para o Outro.

Talvez sim, que as imagens que ardem nos meus olhos estão para além do real, são surrealistas, condensam sentimentos demasiado fortes, de raiva e ódio, de sonhos e utopias, de sofrimento, de frustração.

Talvez sim, pois vejo cidades que se destroem, sociedades que embarcam em Viagens sem Regresso:

Por toda a parte há sonhos
a empurrar outros sonhos
para o Abismo

Rodrigo Adão da Fonseca

P.S. A minha homenagem a Artur Cruzeiro Seixas, cujas palavras e imagens fazem parte do meu dia-a-dia.