21.3.05

Liberalismo vs. Conservadorismo (III)

Concordando genericamente com esta posta do CAA, considero porém que as generalizações são assaz perigosas e não podemos enquadrar o direito à vida ou a sua recusa no campo sempre estreito dos parâmetros filosóficos em que nos movemos.

Ponto de partida em que haverá acordo generalizado é o direito a morrer, um direito inalienável que assiste a cada um de nós, desde que exercido de forma consciente. As interrogações começam aqui. Em que medida uma situação de extremo desespero (porventura a única coisa que haverá de comum entre os variadíssimos casos susceptíveis de justificar a eutanásia) nos permite decidir conscientemente? Admitindo que tal possa acontecer, o que garante que a ciência não criará amanhã condições que devolvam dignidade a uma vida hoje condenada à suprema degradação de um estado vegetativo? Ultrapassados que sejam estes "ses", um outro subsistirá sempre, pese embora a consagração legal que se venha a dar à eutanásia: o direito à objecção de consciência por parte daquele, médico, enfermeiro ou familiar, a quem caiba "desligar a máquina".

Em tempos vivi pessoalmente um caso deste género que retrata na perfeição os dramas, as angústias, todos os problemas de consciência que envolvem. Embora me seja penoso - sim, os liberais também têm emoções - vou relatá-lo em breves linhas, sendo talvez a primeira vez que no Blasfémias trago à liça ocorrências do foro pessoal.

Há cerca de 15 anos, tive uma filha que morreu aos 7 meses de idade, fruto de várias deficiências congénitas que não interessa especificar, mas que não lhe permitiam ver, ouvir, comer, às vezes sequer respirar. Ou melhor, foi morrendo ao longo de 7 meses, 5 dos quais passados no Hospital e grande parte destes ligada a um ventilador. Por volta dos 5 meses e após inúmeras análises, eu e a minha esposa fomos confrontados com a terrível notícia das escassíssimas hipóteses de recuperação da Inês (assim se chamava) e, caso sobrevivesse, da sua irreversível condenação a uma vida vegetativa. Pior ainda, aventaram-nos a hipótese de amanhã não existir sequer um ventilador disponível, caso fosse necessário acorrer a outro(s) doente(s) com mais hipóteses de sobrevivência. Não sei em que medida seria lícito os médicos assumirem eles próprios uma tal decisão, mas hoje agradeço-lhes interiormente não me terem colocado perante essa terrível opção.

Foi a partir desse momento que compreendi por que é a morte muitas vezes definida como a "solução final". Desesperava-me quando assistia ao definhar diário em eterno sofrimento da Inês, ansiando pela sua morte libertadora. Por ela que não merecia aquela vida, mas também - e tenho de assumir este pérfido egoísmo - por mim, a visionar um futuro sem outras perspectivas que não as de minorar o sofrimento daquele ser.

A Inês morreu na noite de S. João de 1989, vítima de uma paragem respiratória. A versão oficial é de que fizeram ainda uma vã tentativa de a entubar. Tenho algumas dúvidas de que tal tenha acontecido, conhecedor que era do miserável serviço de enfermagem que existia no hospital, mas nunca procurei esclarecê-las. Dei graças por não ter estado presente na altura e sido confrontado com a opção terrível de "desligar a máquina" ou, no caso em apreço, de a ligar. Sei que não teria coragem de o (não) fazer ou sequer de pedir a outrém que o (não) fizesse.

Foi sobretudo esta vivência que me faz hoje encarar a vida como um bem supremo, insusceptível de ser discutida debaixo de pressupostos ideológicos. Conseguirei porventura dispor da minha, jamais poderei dispor da do próximo.