27.3.05

LIBERALISMO E CATOLICISMO



(Ao meu amigo CAA)

I. Não devem restar dúvidas quanto à absoluta tolerância com que um liberal deve encarar as opções religiosas individuais. Como todas as escolhas, esta deve ser feita sob o império da completa liberdade individual, tendo apenas o livre arbítrio como método e a consciência como critério.
Não tem, por isso, cabimento discutir as escolhas religiosas de cada um, menos ainda se utilizarmos o liberalismo para o fazer. Se um marxista, que se mantenha fiel às origens, pode e deve fazê-lo, a um liberal deve apenas convir, nesta matéria, a salvaguarda e a garantia dos direitos individuais de escolha e de livre exercício das suas convicções e cultos religiosos. Dificilmente se encontrará, de resto, domínio onde a liberdade deva ser mais absoluta e intransigente, sendo certo que os ataques que lhe foram feitos não são nem coisas do passado, nem ficção. Bastará termos presentes as atitudes proibicionistas dos países do extinto bloco soviético, as perseguições movidas à Igreja Católica durante grande parte da nossa I República, ou o fanatismo religioso como política de Estado que hoje se vive na maior parte do Islão.
Não podem, por conseguinte, sobejar dúvidas sobre a atitude de um liberal perante a questão religiosa: ele deverá reivindicar uma absoluta e completa liberdade de escolha individual e de grupo, bem como salvaguardará sempre as condições para a prática livre e incondicionada dos cultos. Deverá, por outro lado, exigir ao Estado uma posição de neutralidade e imparcialidade total perante as religiões e as igrejas, não privilegiando nem descriminando qualquer uma delas. Os benefícios que possam, eventualmente, ser atribuídos a algumas das suas actividades (o ensino, por exemplo), hão-de sê-lo com base em critérios legais gerais e abstractos, que não resultem da particularidade de determinada confissão religiosa. Já se torna inadmissível a defesa de regimes de excepção fiscal e contributiva ratio personae, por violação do princípio da igualdade e por não ter qualquer fundamento justo que o sustente.

II. Outra questão, absolutamente díspar da anterior, será a de procurar pontos de conexão entre uma determinada religião e o liberalismo. Concretamente, a religião Católica, Apostólica e Romana. Salvaguardando, sempre, a diferença de domínios a que pertencem ? o de Deus e o de César, não podemos ignorar que esses dois universos convergem necessariamente, pelo que, apesar de possuírem, cada um deles, uma esfera de exclusiva distinção ? o sagrado e a relação do Homem com Deus, no primeiro caso, e as relações temporais e de poder entre os homens nas suas comunidades, no caso da filosofia liberal -, em muitos pontos hão-de conectar-se. De resto, sendo o liberalismo, nas suas origens, uma cosmologia europeia e ocidental, não poderia deixar de ser influenciada, favorável ou desfavoravelmente, pela tradição judaico-cristã e, dentro dela, pelo catolicismo.

III. Muito tempo levou para que se percebesse que os conflitos oitocentistas entre os liberais e a Igreja não pertenciam ao domínio do espírito, mas ao do tempo e da matéria. Mais propriamente, das relações de poder entre os homens e as suas organizações. O papado fora, durante séculos, uma força política como qualquer outra, organizada temporalmente num Estado, e que reclamava uma intervenção legitimadora dos poderes soberanos. Não era concebível, na Idade Média, que um poder não estivesse reconhecido pelo papado. Todos sabemos o calvário que atravessou o nosso primeiro rei Afonso Henriques, para que lhe fosse reconhecida pelo papa a sua condição de príncipe soberano. Enquanto que os poderes temporais, nomeadamente, o seu primo Afonso VII de Leão, reino donde Portugal cindira, o reconhece como Rex em 1143, pelo Tratado de Zamora, o papa Alexandre III só em 1179 lhe confere essa dignidade, pela sua bula Manifestis probatum est, a troco de uma pequena fortuna e de uma renda anual que se deveria manter sine die.
O poder da a Respublica Christiana estendeu-se durante séculos, a Igreja de Roma cresceu em fortuna e influência, e nem mesmo os vários cismas e crises que atravessou a diminuíram. Porém, não deve confundir-se o essencial com o acessório: as denominadas (mal) «lutas liberais» (talvez se devessem chamar «lutas pela liberdade» ou, mais tecnicamente, «lutas constitucionais»), no que concerne à sua reclamação da laicização do Estado, não bolem com a doutrina cristã e católica, nem alteraram o posicionamento que o liberalismo deve ter perante os poderes espirituais.

IV. Como, também, não nos parece ser de colher a ideia, muito em voga entre alguns liberais, de que o catolicismo é idiossincraticamente antagónico ao espírito liberal. Que o protestantismo o pode servir melhor e que as sociedades afectadas pela influência da Igreja Católica se teriam atrasado no tempo graças à sua natureza anti-liberal, logo, contrária à concorrência, ao mercado e ao desenvolvimento, da sua doutrina. É necessário não confundirmos as coisas: a chamada «doutrina social da Igreja», onde, de facto, se podem encontrar algumas reservas ao «espírito liberal» é muito recente; pode situar-se, sem erro, nos fins do século XIX, com o papado de Leão XIII. A «Rerum Novarum», encíclica primeva da «doutrina social da Igreja», desse papa, data de 1891, e foi muito ditada pela influência do seu tempo, a saber, o avanço do socialismo na defesa, quase exclusiva, dos mais desfavorecidos. Não pode, ainda que se admitisse que ela fosse genuinamente anti-liberal, o que não é uma certeza, atribuir-lhe o já então mais do que crónico atraso português ou espanhol. Durante grande parte do século XX, nesses países, foram mais os governos que se utilizaram da Igreja do que o contrário. O que não abona a favor de uns e outros, mas claramente não poderá fundamentar a tese de que Portugal foi um país provinciano sob o salazarismo, graças à sua influência nefasta do Cardeal Cerejeira.

V. Há, porém, que fazer aqui alguma justiça à Igreja Católica, e lembrar que os primeiros liberais clássicos, no sentido que se apropriou do termo, foram homens seus. Lembremo-nos da Escola de Salamanca do século XVI, ou Escolástica tardia. Homens como Martín de Azpicueta (1493-1586), Luís de Molina (1535-1601), Francisco Suárez (1548-1617) ou Juan de Mariana (1536-1624), todos liberais consistentíssimos, isto é, que não se limitaram a emitir algumas opiniões ou conceitos desgarrados, mas que elaboraram, de facto, teorias políticas e económicas intrinsecamente liberais. Molina, por exemplo, foi muito mais do que o autor que, provavelmente pela primeira vez, identificou o preço justo com o preço de equilíbrio estabelecido entre a oferta e a procura, isto é, com o preço de mercado. Já não seria pouco, se tivesse ficado por aqui. Mas, foi ele também quem identificou, pela primeira vez, o direito natural com a liberdade individual e a livre escolha. Suárez, muito antes dos revolucionários oitocentistas, defendia o «tiranicidio», isto é, o direito à resistência popular violenta contra os tiranos. Mariana é seguramente a maior influência de John Locke: antecipa a teoria do necessário consentimento popular para legitimar o governo, como, também, aceita que o abandono do «estado de natureza» apenas se justifica para a salvaguarda dos direitos individuais, entre eles, o de propriedade. Ah, a propósito: com Mariana a teoria do «tiranicidio» sofreu um significativo desenvolvimento: não eram somente os déspotas sanguinários que estariam em causa; todos os governos que impusessem tributos sem o consentimento do povo e não observassem as leis que fossem feitas pelas suas instituições representativas estariam nesse grupo e mereceriam o mesmo destino.

VI. Que estes homens foram da hierarquia da Igreja Católica, não restam dúvidas. Como não deve, também, cair-se no reducionismo obscurantista de a identificar com determinados períodos da sua história ou de algumas das suas personagens. Com a Inquisição e Torquemada, por exemplo. Nada faz pior à Verdade e à defesa de uma sociedade livre, do que atacar a Igreja pela responsabilidade da Inquisição. Ou antes, do que condenar irremediavelmente uma pessoa ou uma instituição, por um acto cometido ao longo da sua vida, ou por um período da sua história. A Igreja não é a Inquisição, ponto final. Nela viveram homens que pensaram de muitas maneiras e de formas variadíssimas, sendo certo que não se poderá extrair uma «ideologia» da Igreja, até porque, como é óbvio, não lhe cabe essa missão, ainda que ela o pudesse reclamar (como aconteceu por diversas vezes ao longo dos últimos dois mil anos).

VII. Mas a Igreja possui uma doutrina e enferma-se de uma ética, sendo que a ambas subjaz uma visão do Homem e uma atitude perante ele.
Veja-se que, em primeiro lugar, o Homem é uma criação divina e, como se retira dos Evangelhos, foi «feito à imagem e semelhança de Deus». «O Homem é o caminho da Igreja», pode ler-se na última parte da «Centesimus Annus» (1991), de João Paulo II. «As ciências humanas e a filosofia servem de ajuda para interpretar a centralidade do homem dentro da sociedade» (54), pode ler-se nessa encíclica. Não é isto mesmo que o liberalismo defende? Não é em homenagem ao Homem, à sua dignidade, consumada pela liberdade individual, que se justifica a ética liberal?

VIII. É certo que a Igreja considera a propriedade privada limitada por uma finalidade social. Como se afirma na «Laborem Exercens» (1981), «A tradição cristã nunca defendeu tal direito como algo absoluto e intocável; pelo contrário, sempre o entendeu no contexto mais vasto do direito comum de todos a utilizarem os bens da criação inteira: o direito à propriedade privada está subordinado ao direito ao uso comum, subordinado à destinação universal dos bens» (14). Mas, não é verdade que, para os liberais, o direito à propriedade privada se justifica por ele ser a melhor forma de realização social do homem e dos seus bens e meios de produção? Para o liberalismo, a defesa intransigente da propriedade não é um capricho. Menos ainda uma manifestação de egoísmo, como o pretendem alguns dos nossos adversários. Ele é um meio de realização do Homem, da garantia da sua liberdade, e, nessa medida, a melhor forma de se alcançar o máximo expoente possível do bem comum. Que, por sua vez, pode aceitar-se como a dimensão moral do próprio conceito de mercado: é lá que os homens em liberdade, dotados do seu livre arbítrio, podem dispor da maneira mais adequada do que é seu e chegar ao melhor resultado para todos. Esta cosmogonia liberal não anda verdadeiramente muito longe do bem comum que se pretende como limite à propriedade privada, segundo a interpretação mais recente de João Paulo II. Não se trata, a nosso ver, neste último caso, de sugerir a intervenção do Estado nos direitos de propriedade, mas a fundamentação ética da sua defesa. Tal qual o faz o liberalismo.

IX. Merece, também, neste domínio, que se preste atenção ao conceito de livre arbítrio. Ele está no cerne do cristianismo e do catolicismo, da mesma forma que opera em toda a teoria liberal. Já Sto. Agostinho, nos fins do século IV, escrevera o «De Libero Arbítrio», considerando que o Homem estava limitado pelo pecado original na sua liberdade, necessitando da intervenção de Deus para se aproximar do bem. Porém, nem lhe negava a liberdade, muito menos a possibilidade de optar entre o Bem e o Mal, admitindo, contudo, que só pela revelação poderá alcançar Deus e o Bem. S. Tomás de Aquino, mais tarde, tentará superar essa aparente contradição entre a liberdade do Homem na sua relação com Deus, dizendo que a intervenção divina só surgiria nas escolhas humanas quando houvesse divergência com a inclinação natural da vontade concreta. Só neste último caso o arbítrio dos homens poderia ser coagido pela acção de Deus.

X. Vale a pena ver o que Luís de Molina disse sobre isto. Ele resolveu, de facto, a tensão entre ambos os termos ? a liberdade do Homem e a omnisciência de Deus: o Homem possui livre arbítrio, que usa para planear, escolher e decidir, embora necessite do concurso divino para poder concretizar os seus objectivos, sem que, contudo, esse auxílio determine a sua vontade; pelo contrário, a intervenção divina só é provocada pela existência de uma decisão livre do Homem. O livre arbítrio é o centro da doutrina liberal. Sem ele não existe liberdade, nem propriedade, nem mercado, nem coisa nenhuma. A sua negação leva ao colectivismo e à negação do indivíduo. A possibilidade de escolher, de optar por um ou outro caminho, por decidir por si próprio, de escolher bem ou mal, o Bem ou o Mal, como dirão os católicos, é o ponto nevrálgico que separa os defensores da liberdade individual dos que a querem ver condicionada por terceiros. Molina não podia ter encontrado melhor fundamento para a ideia da liberdade e do livre arbítrio, para essa essência da natureza humana à qual os estóicos chamavam, muito tempo atrás, o «domínio de si» ou «autarquia».

XI. Por último, reflitamos, ainda que brevemente, sobre outro conceito do liberalismo clássico: a «ordem social espontânea» ou «cataláxia». Ela resulta do exercício da liberdade individual, traduzido num infinito número de actos, decisões e comportamentos que nenhuma inteligência humana pode abarcar, prever, isto é, compreender no seu conjunto. Logo, que não poderá planificar, embora frequentemente o faça, cedendo assim ao capricho e à vaidade que o racionalismo intervencionista representa. O conceito liberal de «mercado», que alguns pensam tratar-se de um sinónimo de «Feira da Ladra», é isto. A «mão invisível» encontra-se aqui e, graças a ela, uma sociedade livre é mais feliz, melhor organizada e mais desenvolvida do que qualquer «paraíso» planificado. Nesta convicção de que a «Grande Sociedade», como lhe chamava Hayek, se basta a si mesma e se é capaz de auto-determinar, reside um postulado sagrado do liberalismo. Os crentes dirão que, assim sendo, a sociedade livre se encaminha para o Bem, ou seja, para Deus, e que alcança desse modo o bem comum, estabelecendo assim uma convergência irrecusável entre a religião que professam e as suas convicções liberais. Poderão mesmo dizer que essa «ordem» decorre da existência de Deus e que ela O objectiva e torna evidente. É certo que se pode tentar encontrar outra racionalidade para a «ordem social natural». Nos homens, seguramente. Embora, se não se tiver algum cuidado, estaremos a cair no racionalismo iluminista e, em última instância, nos arrisquemos a negar quase tudo o que defendemos nessa matéria.

De todo o modo, para liberais crentes e ateus (e, já agora, para os socialistas, também), uma BOA PÁSCOA!