30.3.05

A REFUNDAÇÃO DA ESQUERDA

Ao contrário do que alguns ânimos mais ligeiros podem ser levados a acreditar, a abundância não significa necessariamente prosperidade e estabilidade. Como qualquer principiante em economia facilmente explicará, a maior parte das crises têm início precisamente aí, nos momentos de expansão e crescimento, onde se podem gerar os factores que levam à recessão.
Dito por outras palavras e aplicando estes sábios ensinamentos à nossa realidade política, não nos parece que deva ser apenas a direita a preocupar-se com o seu futuro e com a reorganização dos seus partidos tradicionais. Não é pelo facto de os partidos de esquerda terem tido, nas legislativas, uma votação histórica, que o seu espaço político se encontra equilibrado e estável. Senão, vejamos.
No que toca à direita, é óbvio que os seus dois partidos do regime atingiram, no conjunto, o ponto mais baixo de sempre. No reordenamento que necessariamente se fará, o máximo que poderá suceder será o apagamento de um deles em relação ao outro, caso venha a ocorrer, como no passado, qualquer situação excepcional como, por exemplo, o PSD encontrar o seu novo Cavaco. Não é, contudo, previsível que isso suceda, tendo, por conseguinte, como mais provável a hipótese dos dois partidos crescerem em simultâneo, mantendo as suas quotas de eleitorado habituais e a equidistância distância relativa entre si.
Com a esquerda não se passa o mesmo. A competição pelo eleitorado conheceu, nestas eleições, um novo e sério protagonista: o Bloco de Esquerda. Esta nova formação partidária destabilizou por completo o ordenamento tradicional da esquerda, que carece a curtíssimo prazo de uma definição clara. O PS e o PCP sabem que, quando o eleitorado voltar a bandear-se para a direita ? o que sucederá mais tarde ou mais cedo, como é próprio da democracia ? não haverá votos para todos. Avizinha-se, portanto, uma luta fratricida pelo eleitorado de esquerda: o BE quererá sedimentar as suas posições, precisando, para isso, de canibalizar o PCP e algum voto urbano do PS; o PCP sabe que o BE ameaça a sua existência e tem de lhe conquistar parte do eleitorado, o mesmo se passando com o PS, que não estimará continuar a perder votos para o Bloco. Neste último caso, a «guerra» já é evidente, sendo a escolha de Manuel Maria Carrilho para a Câmara de Lisboa motivada pelo crescimento do Bloco, do que propriamente por eventuais preocupações com a direita. A isto deve acrescentar-se uma evidência que tem sido pouco tida em conta: não foi a esquerda quem ganhou as eleições, foi o PS. E foi esse mesmo PS quem, com a maioria absoluta alcançada, pôs fora do espaço de influência de governo o PCP e o BE. Que, obviamente, não lhe serão meigos na apreciação dos seus talentos.
Portanto, se a direita precisa de se reordenar, ou refundar, como agora se usa dizer, depois da pesada derrota de 20 de Fevereiro, o mesmo ocorre com a esquerda, por razões diametralmente opostas, mas tão ponderosas quanto as outras. Com a agravante de que, com o PS e, para o eleitorado, a esquerda em geral no poder, a insatisfação irá penalizá-la e beneficiará inevitavelmente, a prazo, os partidos de direita.
Em democracia o poder não é estático e, de tempos a tempos, muda de mãos. Talvez seja útil a esquerda começar a pensar nisso.