18.8.05

AMÉRICA, CATOLICISMO E O CONTÍNUO, EMBORA PIO, RESVALAMENTO PARA VIRAR O BICO AO PREGO


O argumento que AAA e Pedro Picoito utilizam no comentário a esta minha posta é recorrente em alguns católicos esclarecidos (bem aflitivamente escasso mas excelentemente ilustrado nos citados), embora também se revele maçador o seu emprego continuamente desfocado - seja por negligência ou por intenção falaciosa.

Quando se defende que o acentuado sentido religioso dos norte-americanos não os impediu de amarem a Liberdade e se acena, academicamente, com Tocqueville dizendo que este «explicou pelo profundo sentimento religioso dos americanos a maturidade da sua democracia», esquecem-se alguns factores essenciais da interpretação do problema:

I

- Em tese, não parece existir contradição entre a Liberdade e o exercício individual de uma opção religiosa (aliás, o conceito moderno de Liberdade nasceu precisamente da exigência de tolerância religiosa tornada necessidade com as constantes perseguições que os católicos fomentaram contra todos os outros, inclusivamente os vários esforços persecutórios que os Stuarts, católicos e absolutistas, levaram a cabo na Inglaterra do séc. XVII).

- Mas uma coisa é a opção por uma determinada fé, outra, completamente diferente, é a adesão incondicional aos ditames de uma organização demasiado terrena como a ICAR.

- A significação católica da expressão "sentido religioso" recusa, por princípio, a motivação individual como elemento básico da relação com o sagrado preterindo-o em prol da intermediação, feita incontornável, de uma estrutura administrativa, i.e. a ICAR.

- A ética católica é avessa ao individualismo, subalternizando ou, até, asfixiando, se o clima for propício, as manifestações do singular preferindo a exaltação das virtudes do conjunto uniforme.

- Ser católico significa, antes de tudo o mais, a submissão à ICAR; a diluição do indivíduo na massa dos "fieis" seguidores dos dogmas e das regras comportamentais impostos de fora para dentro - todos insindicáveis, claro.

- Assim, num prisma católico, "sentido religioso" será a integração que cada um assume no colectivo da organização que define os dogmas religiosos e os códigos grupais de conduta.

II

- Ora, quando se refere o «sentimento religioso dos americanos» seria conveniente realçar que este parte de uma base individual, de uma relação de cada um com o sagrado e do modo como a pessoa, por si mesma, entende viver os aspectos religiosos que considera relevantes - desvalorizando a intermediação, secundarizando as organizações que actuam nesse mercado.

- O conceito moderno de individualismo americano que, sem qualquer paradoxo aparente, é intensamente comunitário, parte de uma vivência protestante na sua significação original, i.e. brotou em grande parte da sua génese de contraposição ao catolicismo - herdada dos emigrantes do Mayflower.

- Não vive de imposições alheias, não se realiza através de verdades reveladas verticalmente pela estrutura hierárquica de uma organização que tudo julga saber, que se arroga o monopólio da interpretação de tudo o que lhe interessa e que ? ainda por cima! - se afirma infalível.

III

- Se o sentido religioso de um católico depende da sua maior ou menor sujeição à organização administrativa denominada ICAR, então importa considerar o papel histórico que esta teve na consolidação da Liberdade.

- E os resultados dessa reflexão são nada menos do que catastróficos: a luta pela Liberdade fez-se quase sempre contra o poder da ICAR ou venceu-se apesar da oposição desta.

- O liberalismo continental nasceu de uma luta, longa e árdua, contra o absolutismo real e a tirania religiosa católica que sempre o amparou.

- Se isto não aconteceu nos países de tradição anglo-saxónica foi porque, devido a uma feliz coincidência, as necessidades de Henrique VIII (que extravasaram em muito o plano meramente pessoal) acabaram por resolver antecipadamente a questão.

- Ainda assim, como já disse, a resistência e o contraste com o modo de governo civil e o "sentido religioso" dos papistas, formaram o núcleo duro da lógica da Liberdade e da Igualdade dos americanos.

- A ICAR foi e é uma organização de poder; na sociedade internacional actua como um sujeito de direito e em cada país comporta-se como um agente político com uma agenda bem definida e estratégias de defesa feroz dos seus interesses e bens; a sua grande preocupação é participar e influenciar as opções da governação dos Estados.

- Quanto mais poderoso for um Estado no que toca à facilidade de imposição de condutas aos cidadãos, mais desimpedido está o caminho da ICAR para conseguir os seus intentos através da conquista de posições de influência no aparelho desse mesmo Estado.

- Ao contrário, a fragmentação do poder e o sentido denso e amplo de Liberdade fortalecem o indivíduo porque mitigam o poder do Estado e afrouxam o sentido colectivo - mas, inevitavelmente, complicam as intenções de poder da ICAR retirando-lhe a âncora dos poderes públicos e o mar lógico do colectivo em que têm de navegar.

- Muito por isso, é que, tradicionalmente, nos países católicos (por exemplo, os da Europa do Sul e os latinos-americanos) é enorme a propensão para a intervenção estatal em contraste com as preocupações de limitação da acção do governo que existem no mundo anglo-saxónico, particularmente na América.

- O «sentimento religioso dos americanos», esse mesmo que participou na feitura da grandeza daquela nação, nada tem a ver com o catolicismo e é-lhe contrário nos seus fundamentos históricos e conceptuais.

- Confundir o «sentimento religioso dos americanos» com aquilo de que estes sempre se quiseram distanciar é um erro grave; ou, quando muito, um pio esforço de falácia argumentativa.

IV

- O tipo de argumentação que mais agruras estomacais me provoca é o que assenta na douta e auto-comprovada "opinião comum dos doutores", i.e. num amontoado de citações e de referências doutrinais a consagrados, quase sempre desligadas, na origem, do ponto da discussão.

- Prezo bastante a obra de Tocqueville (por coincidência, neste momento estou a escrever um texto acerca deste autor), mas aprecio muito menos as abundantes interpretações, para todos os gostos, que se fazem do seu pensamento.

- E Tocqueville, apesar da lucidez da sua análise acerca da sociedade americana, enganou-se algumas vezes. Gravemente, até.

- Curiosamente, o erro mais confrangedor de todos parece-me ser o que cometeu sobre os avanços inexoráveis do catolicismo na América - hoje em dia, apesar da distância, torna-se penoso ler o capítulo VI do "Da Democracia na América", intitulado "Do Progresso do Catolicismo nos Estados Unidos" (II, VI).

- A falência das premonições de Tocqueville acerca da substituição do protestantismo pelo catolicismo é total e não pode ser atenuada pelas vagas de emigração irlandesa nas duas-três décadas subsequentes à sua visita, nem, muito menos, pela invasão dos hispânicos católicos nos tempos contemporâneos.

- Este último fenómeno, aliás, também pelas suas componentes católicas, provoca na actualidade as maiores inquietações em vários pensadores americanos que se interrogam sobre a sua vertiginosa perda de identidade - simplificando, quanto mais catolicismo, menos americanismo (por todos, Samuel P. Huntington, "Who Are We? - The Challenges to America's National Identity", Simon & Schuster, New York, 2004).