Jorge Sampaio prepara-se para, em discurso a proferir hoje, durante as comemorações do dia da proclamação da República (5 de Outubro de 1910), apresentar uma sugestão: pensar-se na hipótese de inversão do "ónus da prova" em matéria de investigação e de julgamento dos denominados CRIMES ECONÓMIOS.
Com todas as reservas resultantes do facto de este comentário ser redigido antecipadamente e sem conhecer tal discurso (e, consequentemente, os termos concretos segundo os quais o Presidente da República irá abordar a ideia) e com as dúvidas necessárias resultantes da pouca reflexão que, relativamente ao tema, tenho, uma coisa é certa: a ideia de Jorge Sampaio parece-me, á primeira vista, muito perigosa ( mesmo, precipitada, talvez...).
1º Desde logo, a primeira questão/reserva que - em abstracto e desconhecendo, por ora, aquilo que concretamente será dito por Jorge Sampaio - a sugestão de inversão do "ónus da prova" relativamente a crimes de tal natureza suscita é, precisamente, sabermos de que crimes é que estamos a falar.
O que são crimes económicos?
Podem ser muita coisa, englobando tipos de ilícitos diferentes, de gravidade ético-social diversificada como, por exemplo, se pode verificar pela simples leitura das conclusões do 11º Congresso das Nações Unidas sobre Prevenção do Crime e Justiça Penal (Banguecoque, 18 a 25 de Abril de 2005)
"Por crime económico e financeiro entende-se, de um modo geral, toda a forma de crime não violento que tem como consequência uma perda financeira. Este crime engloba uma vasta gama de actividades ilegais como a fraude, a evasão fiscal e o ?branqueamento? de capitais. É, no entanto, mais difícil definir a noção de crime económico e o seu conceito exacto continua a ser um desafio. A tarefa complicou-se ainda mais devido aos avanços rápidos das tecnologias, que proporcionam novos meios de perpetuar os crimes desta natureza.
É difícil determinar a amplitude global do fenómeno, em parte devido à ausência de um conceito claro e aceite por todos, em virtude de os sistemas de registo dos crimes económico-financeiros diferirem consideravelmente de um pais para o outro e de vários casos não serem identificados porque as empresas ou as instituições financeiras optam por resolver os incidentes internamente".
2º Depois, sem recusar, à priori, a tese esboçada (segundo a imprensa) da inversão do "ónus da prova", julgo que a dita sugestão (ou tese) enfrenta alguns problemas graves:
a) é uma tese que pretende dar eco às vozes da moda, reagir às "palavras-chave" do momento, da sensibilidade e das impressões politicamente correctas dos media. Porventura, ser até atractiva para o público em geral!
Ora, desde há alguns anos a esta parte, entre nós (e não só) mitificaram-se certos tipos de ilícitos, a começar pela fuga aos impostos - a panaceia que, para todos o governos e para o Estado (qualquer que seja o governo concreto) serve para distrair os eleitores e justificar as graves e crónicas incompetências, exageros e más políticas financeiras públicas!
Chegamos a ver, em tempos, alguém com muitas responsabilidades, eleger o contrabando (seguramente de tabaco) como um grave atentado contra os interesse do Estado, de todos nós em geral e de cada um dos cidadãos em particular, colocando-o, quase ao mesmo nível do terrorismo ou dos crimes sexuais!
Talvez esteja enganado, porém, não gosto de viver numa sociedade em que se pretende colocar no mesmo plano de perigosidade social e de reprovação ética, a fuga ao fisco (sobretudo, a irrelevante, aquela que a máquina fiscal consegue apanhar?) e um assassínio (quiçá, também por causas patrimoniais), uma violação ou a pedofilia!!!
O que sucede é que a hiper-valorização-dramatização dos chamados crimes económicos (seja lá o que isso for, em concreto!), sobretudo, daqueles que atingem ou apenas raspam, ao de leve, o sacrossanto Estado (note-se, já não falo da repressão ao tráfego da droga - mas, suponho, não é relativamente a isso que Jorge Sampaio se referirá, concerteza) , é um discurso da moda, de uma certa moda estatista, de um certo preconceito de esquerda reciclada que, sobretudo, abre caminho à ultrapassagem do respeito dos direitos, liberdades e das garantias individuais, pela máquina compressora do poder do Estado (mesmo de um generalizadamente reconhecido mau Estado).
Ora, propor-se a inversão do "ónus da prova", neste tipo de crimes (quais, em concreto? - repito a dúvida), é meio caminho andado para no futuro próximo, voltar-se a fazer "tábua rasa" dos direitos e das garantias dos arguidos, sob qualquer pretexto...à la longue, poderá ser o começo de uma auto-estrada de quatro vias para uma total ausência de "Estado de Direito"!
b) O Direito - sobretudo, o Direito Criminal que mexe com a liberdade individual de uma forma directa - não pode andar a reboque de modas, por mais apelativas que sejam, sob o ponto de vista político-partidário (o que será sempre circunstancial).
3 - Mais uma vez, esta sugestão de inversão do "ónus da prova" é o reconhecimento de que a máquina de investigação tem insuficiências e que, perante estas, o Estado, para fazer o seu papel, escolhe o caminho mais fácil: mudar as regras do jogo, invertendo o tabuleiro para o seu lado!
Esta moda/tentação passa um pouco por todas as áreas de actividade da administração pública: a máquina fiscal é incapaz de actuar eficazmente - logo, oneram-se os contribuintes com mais obrigações declarativas, inverte-se o "ónus da prova" em matéria de contencioso fiscal e mudam-se as regras do jogo a meio do campeonato (como Bagão Félix e o antecedente Governo, com o seu estranho OGE para 2005, tentaram fazer, em matéria de respeito pelo princípio da audição prévia dos contribuintes - e como muito bem foi aqui, oportunamente, denunciado pelo CL).
As Secretarias dos Tribunais não têm tempo nem meios para garantir um sistema de notificações - logo, põem-se as partes a notificarem-se umas às outras; etc., etc., etc..
No fundo, se a máquina do Estado não consegue actuar (vá-se lá saber porquê, com o déficite público que temos), então, ou repercutimos o ónus desse mau funcionamento para a esfera dos cidadãos, ou então, pomos os cidadãos a fazer o papel do Estado (mas, claro está, sem que a despesa pública diminua!!).
Porque não acabarem-se com os órgãos e as autoridades de investigação criminal?
Cada um de nós que faça esse papel, que investigue e que delate!
Se, porventura, se corre o risco de se restringirem os direitos, as garantias e as liberdades individuais?! Bom, pior para estes....a bem do Estado.