4.11.05

Posts Austríacos I

A ideia de cooperação é apresentada com frequência como uma realidade localizada, apenas existente no âmbito da actividade empresarial; a cooperação tem, nesta forma de ver as coisas, uma dinâmica muito própria, pertence ao universo do «capitalismo» a que os cidadãos comuns apenas têm acesso no quase passivo papel de «consumidores» (cf. aqui e, sobretudo, aqui e aqui e aqui). Uma certa mentalidade bem enraizada no pensamento português não concebe o indivíduo como agente activo na ordem económica; por seu lado, a cidadania, é bom de ver, exerce-se e resigna-se ao universo do político. Os fenómenos de cooperação, funcionando pretensamente fora da esfera de disposição dos cidadãos - reduzidos na ordem económica ao impotente papel de «consumidores» - devem ser por isso consideradas actividades subordinadas, gravitando sob a alçada do fenómeno político.

Esta abordagem, pese embora seja apresentada com nova roupagem pelos movimentos neosocialistas, com semânticas mais actuais, não é em si mesma nova (em Portugal, as suas causas remotas perdem-se no tempo), tendo sido amplamente criticada, entre outros, por Hayek.

Hayek olhou com desconfiança esta promoção de uma ordem económica e social sob tutela do político, esta planificação «a régua e esquadro». Sempre defendeu uma ordem espontânea, não caótica como por vezes se quer fazer passar, mas onde simplesmente se dispensa a existência de um - ou vários - Big Brother(s) com funções (de maior ou menor intensidade) de controle, planeamento, gestão e direcção da economia; Hayek considerava que uma sociedade funciona melhor se assentar na cooperação livre - ou seja, não condicionada - dos seus agentes.

Hayek defendia que as instituições centralizadas, ainda que imbuídas de um generoso espírito de serviço ao próximo, não são capazes de se substituir ao cidadão, não são aptas a antecipar e decidir de acordo com todos os interesses individuais (o itálico é meu). É que às decisões individuais subjazem preferências, disposições, interesses particulares, elas implicam a ponderação de distintas especificidades que não podem ser reconduzidas a nem sintetizadas num processo de decisão colectiva. Esta é a razão pela qual os liberais olham com simpatia para os mecanismos de decisão descentralizada e espontânea, enfatizando as dificuldades causadas pela intervenção artificial de entidades centralizadoras, por muito nobres que sejam até os fins que supostamente inspiraram a sua criação (o itálico é novamente meu).

E basta olhar em redor para perceber que neste aspecto, como noutros, Hayek tinha razão: na verdade, com uma frequência preocupante, a acção do Estado e das entidades públicas tem consequências não previstas, tantas vezes até contrárias às que supostamente se pretendia atingir. E até, num plano bem menos benévolo, para além das óbvias dificuldades que os entes estatais têm em servir adequadamente a comunidade, o que pensar quando quando constatamos que a acção centralizada cada vez mais se move motivada por «conveniência(s)» própria(s), distinta(s) do(s) interesse(s) da generalidade dos cidadãos?

O liberalismo - ao contrário do que por vezes é veiculado por quem o vê como «ameaça» - não quer implodir o Estado por razões malévolas, nem serve interesses obscuros congeminados em caves por lacaios do grande capital que prescindem nos seus encontros dos benefícios da luz eléctrica. Simplesmente (e na linha de Hayek) tem-se consciência que não há ninguém que seja capaz de i) ter ou conseguir obter o conhecimento necessário para planificar a economia; ii) produzir decisões que sirvam os interesses particulares dos cidadãos; e iii) alocar eficientemente os recursos absorvidos. Tudo isto - e mais alguma coisinha que sempre se «encaixa» bem na conjuntura eleitoral - sem dar asneira, não é caso para desconfiar (*)?

Ser liberal, no mundo de hoje, é compreender a falibilidade humana e a impossibilidade de conceber uma existência sem risco; é defender soluções na linha do «keep it simple», desconfiando de artifícios e complexos fenómenos de regulação e institucionalização que não servem por ineficiência e óbvia impossibilidade prática os supostos propósitos iniciais ou, pior ainda, geram interesses próprios, alienações de vontade que destroem a coesão na comunidade e pervertem as noções de Justiça e Liberdade; é entender que ainda não se descobriu uma solução melhor para a defesa do cidadão do que ser «cada um» a tutelar a sua esfera de direitos e a manifestar os seus interesses e preferências, numa comunidade estatal, sim, mas onde a ideia de soberania popular não seja apenas uma forma de retórica ou assuma a sua forma «mínima de subsistência» enquanto conceito; é perceber que as civilizações evoluem quando se facilita a cooperação, compreendendo que o progresso é o fruto natural da acção concertada dos homens; ser liberal, hoje, é negar a existência de «desígnios universais» e de todas as formas de «sintetização das vontades», sobretudo quando com facilidade nos apercebemos que são irrealizáveis e até indesejáveis.

Rodrigo Adão da Fonseca

(*) Talvez se pudesse abrir uma excepção para Jesus Cristo; este, contudo, é um ponto polémico entre os liberais; reforçado pelo facto da sua passagem pela terra ter sido relativamente curta (sendo até negada por muitas almas penadas); acresce que a sua vida pública foi também bastante limitada, de três anos apenas, ele próprio não completou uma legislatura. O que torna o balanço da actividade de feitura bem difícil.

P.S. Embora estivesse com vontade, optei por não desenvolver alguns aspectos, em Hayek, interessantes relacionados com a ordem espontânea, o evolucionismo e as limitações da razão humana. A perspectiva de uma réplica do Tiago Mendes - e a falta de tempo que teria para uma tréplica adequada - inibiram a minha escrita e moderaram os meus ímpetos. Optei mesmo por seguir a minha própria máxima: «Keep it simple». Podem começar a mandar piadas aos luso-autríacos.