Luis Nazaré, num esforço titânico de contenção, afirma, em reacção ao meu post de ontem, que "já não tem paciência para receber lições de liberdade de quem (felizmente) nasceu na geração Coca-Cola", desabafo habitual de alguns que, por terem nascido no tempo em que o vinho dava de comer a um milhão de portugueses, consideram que a Liberdade e a sua definição são suas conquistas e património pessoais. LN pode ter vivido os tempos da ditadura; não sei se é um "mártir" da Liberdade; a mim apenas me preocupa o que ele escreve hoje sobre a Liberdade. Tudo o resto aqui, e neste momento, não tem relevância.
LN considerou a minha posta de ontem "vibrante", afirmando que ela "traduz fielmente" um "sentimento urbano e pós-moderno sobre a questão participativa". Na verdade, a democracia participativa teve o seu expoente máximo na polis grega, o que, lateris (muito lateris! e com alguma boa-vontade), poderá permitir apontar para o aspecto "urbano" do meu comentário; quanto à pretensa pós-modernidade da posta, tenho as minhas dúvidas; mas não vou explorar especialmente este aspecto.
LN diz ainda que não aceita "lições de liberdade"; com franqueza, ninguém na jovem "direita espevitada" tem a pretensão de ensinar o que quer que seja a LN (a não ser relembrá-lo que a "mocidade" já não existe nestes novos tempos); aproveita para se justificar na sua posição, procurando explorar algumas das dificuldades óbvias que existem na chamada democracia participativa onde se enquadra o referendo, aspectos que, contudo, na minha imberbe opinião, não invalidam as suas virtudes.
A democracia evoluiu para um modelo representativo, pela óbvia impossibilidade de se adoptar um modelo puro de democracia directa; em todo o caso, existem situações que, pela sua importância, devem ser objecto de escrutínio.
Diz LN que se pudéssemos experimentar e fazer prova real, "os resultados seriam catastróficos para as causas do presente e do futuro". Em relação a alguns dos temas indicados por LN, não sei quais seriam os resultados: seriam os que todos, em conjunto, escolhêssemos; prefiro a catástrofe oriunda e partilhada por todos, que a desgraça promovida por alguns em prejuízo dos outros.
Hoje assistimos a uma total descrença dos cidadãos em relação ao político; em parte, porque um conjunto de pessoas, como o LN, preferem assumir o leme da Nação, tutelando-a, dizem, com receio da "catástrofe" (pena que, neste caminho tortuoso, alguns acabem por perder-se, governando para si próprios); em parte, também, e como dizia Paulo Rangel, porque os cidadãos procuram desresponsabilizar-se em relação às decisões dos políticos, podendo, desta forma, penalizar liminarmente o universo do poder pelos insucessos, divorciando-se do projecto comum. Existe hoje uma crise de responsabilidade, nas esferas política e dos cidadãos, que faz com que impere uma cultura de desperdício e corrupção, de evasão fiscal, de afastamento da coisa pública, de delapidação do património de todos, de oneração irresponsável das gerações futuras, de "subsidio dependência" e letargia geral.
Por isso a receita liberal, defensora da responsabilidade individual e da democracia participativa, urge. É, assim, fundamental diminuir o peso do Estado, que substitui, à força, mais do que é necessário, os cidadãos nas decisões que deveriam ser suas; é indispensável transferir certos poderes para organizações mais próximas dos cidadãos, eliminando parte da mega-estrutura do poder centralizado, portadora de uma forte tendência para a alienação; importa ainda reforçar o instituto do referendo, que permite eliminar a mediação do processo político e a tomada de decisões directas em assuntos essenciais e que ultrapassam o quadro partidário.
Medo da "catástrofe"? Quem tem medo compra um cão. Não sonega as liberdades, mesmo quando de uma forma paternal diz que não aceita lições. Sou urbano; nasci numa cidade, e sempre vivi em grandes metrópoles; nunca soube bem o que é ser "pós-moderno" (parece-me que será um mix de relativismo light e lugares comuns; por isso duvido que o seja); e sou um expoente bem visível da geração Coca-Cola, no sentido mais literal que o termo pode assumir (devo ser o maior cliente nacional); mas antes isso, que fazer parte, como LN faz, de uma geração em que o vinho dava de comer a um milhão de portugueses e esquecer a essência da Liberdade: LN será certamente "anti-fascista" e "amante da Liberdade"; admito, contudo, que provavelmente na adolescência, embora bebesse vinho, fosse capaz de preferir a vodka; paradoxalmente, sendo da Esquerda que se considera um "bastião da Liberdade" e rejeita lições, desconfia dos processos democráticos. Recomendo-lhe que releia Raymond Aron (in "As Etapas do pensamento sociológico"), um livro do seu tempo, onde poderá recordar as razões pelas quais é perigoso o poder político substituir-se na determinação das vontades alheias. E este perigo não se manifesta só no Estados Socialistas Puros: existe, com maior ou menor intensidade, sempre que o Estado se substitui ao cidadão.
Como Sir Isaiah Berlim, concordo que para viver em sociedade todos temos de sacrificar parcialmente a nossa esfera de liberdades, este é o lugar-comum que nos conduz à democracia representativa; mas será assim tão necessário prescindir dos cidadãos nas decisões mais relevantes, negando-se a possibilidade de referendo?
Rodrigo Adão da Fonseca