13.10.05

CARTAS AMERICANAS - V




Meu Caro CAA,

Ando muito preocupado contigo: não dás notícias, pouco escreves, não sabemos se estás bem se mal, nem se regressas brevemente ou se vais ficar por aí indeterminadamente. Sempre duvidei muito da tua peregrinação americana, sobretudo porque, sabendo-te facilmente influenciável, temia que te pudesses render a esse mundo de exploração neocapitalista neoselvagem, onde os homens são escravos de uma plutocracia sem escrúpulos nem sentimentos.
Os receios adensaram-se hoje, ao ler o teu «post» (aqui também falamos inglês, ao contrário desses quadrúpedes que confundem o português com o espanhol de Miami!) sobre um livreco de um yankee qualquer.
Para já, deixa-me dizer-te que me desagradou bastante esta adesão do «Blasfémias» ao espírito mercantil da publicidade. Caramba!, o nosso blog é um produto do espírito, uma sublime manifestação da cultura e da intelectualidade e, por isso, jamais deveria ser posto ao serviço dos interesses económicos, sabem lá Deus e Marx de quem. Por isso, quando o Gabriel propôs a inserção de publicidade, votei contra!, e contra votarei, em defesa da cultura desinteressada e abnegada. Andamos, por aqui, a dar cultura ao povo, como bem dizia aquela senhora de cabelo cor de rabanete que escreve no «Expresso», e não para comer à custa do povo. Tanto mais que, segundo diz o Gabriel, os proventos daquilo darão, quanto muito, para um jantarito modesto lá por daqui a um ano. Peanuts, my friend, peanuts!
Mas, também, a minha firme oposição deve-se à natureza cibernética dos ditos livros. Como sabes, caro CAA, um livro é como uma mulher, ou melhor, como as nossas legítimas mulheres, aquelas que amamos e a quem nos dedicamos apaixonadamente. Para intelectuais como nós, um livro não pode ser uma coisa sem espessura física, sem corpo, volume e peso. Antes de o levarmos para casa há que manuseá-lo, tacteá-lo, tirar-lhe as medidas, abri-lo para ver o que lá vai dentro, ler-lhe o índice e o passado do autor. Não pode ser uma coisa a vagar na internet, meu caro! Ainda por cima, o raio do livro que sugeriste tem uma capa medonha: uma carantonha esverdeada com um olho malévolo, espécie de extraterrestre spliberguiano, saído do pavoroso «Marte Ataca»,
coisa que, aliás, os camones muito apreciam.
Acontece que um pormenor do teu «post» me alertou para a gravidade da situação que poderás estar a viver. Escreveste tu que «agora não tenho tempo para fazer o comentário». Não tens tempo porquê? Estás sequestrado? Raptaram-te? Foram os americanos do Bush e da CIA, ou o extraterrestre da capa do livreco de que te forçaram a dizer bem? Acho tudo isto estranho, muito estranho, mesmo.

Estejas bem ou mal, é boa hora para regressares à lusa Pátria.
Por cá, ainda não passou uma semana sobre as eleições autárquicas e o país regressou à calmaria habitual. A festiva agressividade de há alguns dias atrás, que fez o Dr. Rui Rio proferir um discurso de vitória que não ficou a dever nada em ânimo, coragem e autenticidade aos da Fátima Felgueiras e do Valentim Loureiro, já se foi. Somos, bem o sabes, um país de gente civilizada, de bons princípios e de fino trato. Não somos capazes de nos alterar com o nosso semelhante, nem faltamos ao respeito a ninguém. Se por desfaçatez alheia ou ostentação, alguém nos incomoda ou faz sombra injustamente, preferimos um comentáriozito no café, uma carta sem remetente para um jornal ou mesmo para as autoridades. A franqueza e a interpelação directa são, como não ignoras, próprias dos brutos e características dos ignaros. Como essa corja com quem convives desde que aí aterraste.
Quanto ao mais, tudo na mesma: a selecção a ganhar sem brilho nem mérito, treinada por um tipo incapaz e invejoso, a campanha eleitoral para as presidenciais a arrancar com o eclipse do dr. Soares, com o prof. Cavaco a tabuizar, e com ternurentos cartazes com a cara do camarada Jerónimo. O arq. Saraiva já não é director do «Expresso», do que, segundo dizem, não se dará propriamente conta. E há para aí mais umas tantas greves agendadas, que a oposição tem utilizado para intoxicar a opinião pública. Mas o povo trabalhador não se deixa enganar! A greve é um direito inalienável e o resto são tretas! Há que faze-la cada vez com maior empenho para aprofundarmos as conquistas de Abril e para partirmos as dentuças ao grande capital. É certo que o Engº Sócrates não gosta destas greves, porque diz que são contra o Estado e o Estado somos nós todos e não tem patrões, ou seja, exploradores. O Dr. Marques Mendes, que representa os últimos - o patronato explorador - também não defende as greves. Há aí pela esquerda quem se espante com esta estranha concordância. Eu, por mim, já há muito desconfiava que o Engº Sócrates se tinha vendido ao capital. Não constitui, portanto, novidade nenhuma. Para a próxima votarei no Chico ou no Jerónimo, decisão que espero me ajudes a tomar se, entretanto, já cá estiveres e vieres como deve ser.

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