Caro Henrique,
Falemos, então, em Maquiavel e no Liberalismo.
Comecemos por constatar três coisas óbvias: Maquiavel não era liberal (embora os liberais tenham muito a aprender com o que ele escreveu), a História existe de per si sem que a possamos forçar às nossas convicções, e o liberalismo não deve ser espartilhado em categorias ideologicamente fracturantes.
Pondo de lado a sua escassa, mas notável, produção novelística (se é que a categoria se lhe pode aplicar), Maquiavel foi o que hoje pomposamente chamaríamos um «sociólogo do poder». Não foi um historiador, porque as incursões que fez na História foram sempre auxiliares da sua análise política, não foi um moralista porque e ao contrário da tradição do seu tempo, julga (e tentou) descrever assepticamente os fenómenos que analisa, nem foi, no que escreveu, um «spin doctor» do seu tempo, apesar das muitas funções públicas que exerceu e de ter dedicado O Príncipe a Lourenço de Medicis, de quem, aliás, só recebeu desconsiderações e maus-tratos.
Apesar de me agradar imenso o Maquiavel de A Mandrágora e, sobretudo, do Belfagor, o Arquidiabo que se casou, não ignoro que a sua herança política se encontra essencialmente n? O Príncipe, nos Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio, n? A Arte da Guerra e nas Histórias Florentinas. Principalmente, como é óbvio, nos dois primeiros livros. Não posso, porém, deixar de me regalar com aquelas duas referidas novelas, sobretudo do juízo que nelas faz sobre as mulheres, a única prova positiva que, até hoje, genuinamente possuo da existência de Deus. Também em relação a elas Maquiavel não deixou de ser realista: de Lucrécia, heroína d?A Mandrágora, descreveu-a como «umas mulher bela, prudente, honesta capaz de governar um reino» (que patifaria!); de Honesta (que rico nome) encheu-a de tamanhos encómios que o pobre Belfagor, o diabo que encarnou num homem e com ela se casou, assim lhe foi permitido, preferiu ir tranquilamente possuir almas para outro lado, a ficar-lhe com o magnífico corpo. Diga-se, de passagem, que, segundo Maquiavel, «os outros diabos, que tinha trazido consigo para o mundo, tratando-os como familiares, preferiram retornar ao fogo infernal a ter que viver no mundo sob as ordens de Honesta». E, quanto a essa tão espantosa quanto temível espécie, está tudo dito e dito muito bem.
Deixe-me, agora, dizer-lhe porque razão sugeri que Maquiavel pudesse ser liberal, pelo menos nos Discorsi, cometendo um inegável excesso, ou melhor, uma inexactidão.
Não existiam ainda nesse tempo, nos finais do século XIV, princípios do século seguinte, autores que pudéssemos qualificar como verdadeiros liberais. Não estou, porém, de acordo consigo, quando afirma que tivemos que esperar pelo século XVIII para os virmos a ter. Muito antes disso, ainda no século XVI, os autores da designada Segunda Escolástica foram verdadeiros, genuínos e bem preparados liberais. Para não ir mais longe, bastará referir Luís de Molina (1535-1601) e Francisco Suarez (1548-1617), que já defendiam a «lei natural» como refreadora do poder despótico do Estado (da Coroa, se preferir), o «tiranicidio», como terapêutica a aplicar àqueles monarcas que não respeitassem os direitos individuais e de propriedade, assim como desenvolveram importantes conceitos e princípios em torno da moeda, dos preços e dos juros, das suas relações com o valor efectivo das coisas que representam (pelo que não devem ser adulterados), que, anos mais tarde, de facto, no século XVIII, os liberais clássicos iriam retomar.
Por outro lado, muito para além da doutrina, a História dá-nos exemplos de resistências populares em defesa dos direitos individuais e dos direitos de propriedade, muito anteriores a qualquer teorização liberal coerente e anteriores, também, ao próprio Maquiavel. Não perderei muito tempo neste ponto, mas, evitando a banalidade da Magna Charta (cuja natureza libertária é muito discutível, como sabe), mas sempre poderemos referir as resistências locais aos senhorios laicos e eclesiásticos e à centralização régia, em defesa dos direitos consuetudinários locais, ou das mais tardias Cartas de Foral e de privilégio.
Ou seja, a defesa da liberdade, senso latíssimo, não carece de quem a doutrine. Mutatis mutandis, para se ser liberal não se tem necessariamente que ler Locke, Hume, Smith, Ricardo, Mises ou Hayek. Basta sê-lo.
Deste ponto de vista, Maquiavel não foi, mas podia ter sido um genuíno liberal. Em vez de se ter fascinado com o poder, poderia ter-se preocupado em refreá-lo. Quando, no fim do texto que você criticou, o afirmei como tal, fi-lo, obviamente, em forma de exagero provavelmente despropositado. Mea culpa, portanto. Contudo, o que Maquiavel ensinou foi e é, como veremos, de enormíssima importância para um pensamento liberal face ao poder político. Vejamos porquê.
Maquiavel dedicou toda a sua obra à análise do poder. Nessa tarefa ingrata, tentou ser asséptico, isto é, limitar-se a descrever as coisas como elas são e não como poderiam ser. Obviamente que, no seu exercício de parcerística, Maquiavel dá conselhos práticos sobre a conquista, o exercício e a manutenção do poder. No fim de contas, tudo o que a este respeito escreve pode submeter-se a uma frase dos Discorsi: «a ambição e ao desconfiança são naturais no homem».
Por isso, quer O Príncipe, quer os Discorsi são manuais práticos sobre o exercício do poder. O que os distingue, então? Muito provavelmente porque no primeiro desses livros Maquiavel dá conselhos a quem exerce o poder, enquanto que no segundo dá-os, sobretudo, aos que dele são destinatários. Por isso, neste último caso, o paralelismo recorrente com a época da República Romana, paradigma renascentista do governo equilibrado e sensato, onde as magistraturas dividiriam funcionalmente a soberania que, mais tarde, seria reconduzida à unidade do Príncipe. Obviamente, que me agrada ler nos Discorsi que «aqueles que agiram com maior tino ao fundar um Estado, incluíram entre as suas instituições essenciais a salvaguarda da liberdade». Mas é lá também que leio que «é necessário que um só homem imprima a forma e o espírito do qual depende a organização do Estado», ou, pior ainda, que «o legislador sábio (?) não poupará esforços para reter em suas mãos toda a autoridade». É nestas alturas que, ao contrário do Henrique, prefiro retomar Locke e reler os fundamentos com que defendeu a instituição do pacto social: a defesa escrupulosa dos direitos individuais e a liberdade.
Contudo, reafirme-se que mesmo o Maquiavel conselheiro era, essencialmente, um sociólogo do poder, que tentou descrevê-lo, analisá-lo e explicá-lo à margem das paixões dos homens do seu tempo. Esse foi, ironicamente, o seu grande contributo para o liberalismo.
Como refere Murray Rothbard na sua História do Pensamento Económico, Maquiavel desmascarou o poder. Até ele, o exercício do governo era teoricamente entregue a príncipes virtuosos, piedosos e, no fim de contas, preocupados com o bem comum das sociedades a quem faziam o imenso favor de cuidar. Esta era, ao seu tempo, a forma tradicional de legitimar o exercício da autoridade de quem governava, de inspiração obviamente cristã, fosse ela herdeira do platonismo agostiniano, ou do aristotelismo aquiniano: em todos os casos, fossem sábios ou homens comuns, a mão de Deus legitimava o governo dos homens e dava-lhe uma dimensão sobre-humana, necessariamente piedosa e inspirada nos desígnios divinos.
Ora, se é uma banalidade dizer que Maquiavel rompe com a divinização do exercício do poder, trazendo-o para o bem pouco prosaico mundo da avareza, da cobiça e dos baixos interesses dos homens, já talvez o não seja afirmar que, ao caracterizá-lo assim, Maquiavel adverte os homens e as sociedades para o perigo em que o poder se pode transformar. A virtú dos homens de Estado, a partir de Maquiavel, já não consiste no talento para o cargo que decorre da inspiração divina, mas já, apenas e só, da ambição pura e dura de aceder ao comando dos homens, para satisfação de interesses mesquinhos e egoístas. O «bom príncipe» não é, assim, o príncipe bom, mas aquele que souber manejar todos os meios ao seu alcance para conquistar e manter o governo nas suas mãos. Esse é, para Maquiavel e ao contrário dos seus antecessores, o verdadeiro conceito de virtú. O liberalismo ficou a dever-lhe imenso.
Quando os liberais propõem que o Estado tenha as suas funções limitadas e os seus poderes refreados fazem-no, como lembrava Popper, porque não ignoram que o mau exercício do governo é bem mais provável que o bom. Entre muitos outros fundamentos, em que, talvez, o mais forte seja o de que o Estado não deveria cuidar daquilo que não lhe pertence e que pertence aos indivíduos, o liberalismo defende o governo limitado porque, no fim de contas, não ignora, como Maquiavel ensinou, que quem lá está ou possa vir a estar agirá tendencialmente em defesa dos seus interesses, do que do interesse comum, seja lá isso o que for.
Nesta medida, ao descrever o exercício do poder como uma coisa propensamente negativa, que fascina e atraí homens tendencialmente maus, ou que faz vir ao de cima, mesmo nos que o não são, os seus piores instintos e o pior do seu carácter, Maquiavel prestou um dos maiores serviços ao liberalismo de que há memória: disse-nos que, se nos quisermos preservar, temos de ter cuidado com eles, controlá-los e, sobretudo, dar-lhes pouco, muito pouco que fazer.
Um abraço,
Rui de Albuquerque
PS: a questão do liberalismo de esquerda e de direita ficará, se não se importa, para outro dia. De todo o modo, julgo que não ignora o que penso sobre o assunto: não há liberalismo de direita e de esquerda; o que há é liberais à esquerda e à direita.