«Não fosse a acção expedita de S. Pedro - o melhor dos nossos bombeiros -, e o país estaria ainda em fase aguda de incêndios. Até à véspera da chuva de Agosto, registou-se em nove dias um terço dos incêndios da época. O Telejornal da RTP de 15 de Agosto referia que o recorde do ano ocorreu na sexta-feira, dia 11, com 579 incêndios. Mas quem tivesse visto a RTP no dia seguinte não acreditaria nisso. No sábado, dia 12, o Telejornal da RTP foi uma das peças mais tenebrosas da informação televisiva em Portugal em muito tempo.
Além do número extraordinário de acendimentos, houve incêndios muito graves pela extensão, consumo de floresta e pastos e perigo para habitações, como os que angustiaram o povo de Peneda-Gerês, Porto de Mós, Sever do Vouga e Oliveira de Frades.
A cobertura deste ano dos incêndios teve, no geral, uma evolução muito positiva. A auto-regulação jornalística funcionou. Desapareceram jornalistas afogueados, chamuscados, e muitas mulheres aos gritos e em convulsões de choro. A cobertura foi informativa de facto, sem que os telejornalistas escamoteassem emoções expressas por bombeiros e populares. O lado emocional não deve ser omitido, pois não só as emoções são parte essencial da humanidade, e portanto, dignas de registo informativo, como elas se misturam amiúde à opinião, como no ressentimento enquanto emoção pública.
Mas se esta nova contenção funcionou favoravelmente à informação na SIC e na TVI, na RTP serviu para esconder uma intolerável censura da livre informação aos portugueses. Nenhuma regra de auto-regulação pode explicar o que aconteceu no Telejornal de 12 de Agosto, que serve aqui como exemplo do que tem sido em geral esta nova forma de censura na RTP.
Nesse dia, o Jornal da Noite (SIC) dedicou seis das suas 33 notícias exclusivamente aos incêndios mais graves do dia, o que correspondeu a 27,7% da sua duração. Deu ainda outras quatro notícias relacionadas com o tema (presumíveis incendiários, prevenção, Galiza, etc.). Este noticiário abriu com 5 notícias seguidas sobre incêndios e voltou ao tema com dois grupos de notícias na sua segunda metade.
O Jornal Nacional (TVI) também abriu com os incêndios mais graves, a que dedicou as suas sete primeiras notícias, dum total de 38. Os incêndios ocuparam 21,8% do noticiário. Ambos os canais privados fizeram três directos aos principais fogos.
E o Telejornal (RTP)? Não fez nenhum directo. Remeteu os incêndios para a 18ª notícia de 28, já depois do desporto. As três únicas notícias sobre incêndios activos foram tão breves que totalizaram menos tempo (1m50) do que a convalescença de Fidel Castro (2m16) ou a vitória dum João Cabreira na etapa do dia da Volta (2m18). As outras três notícias relacionadas com fogos eram todas positivas: um inventor dum autotanque; uma visita de bombeiros alemães a Vila Real; a entrega de 16 jipes pelo Instituto de Conservação da Natureza aos parques naturais (mas antes, sobre o incêndio no Parque Nacional da Peneda-Gerês, o Telejornal falou duas vezes em Arcos de Valdevez e só no meio da notícia referiu uma vez o Parque).
Isto ocorre semanas depois de a Direcção de Informação (DI) da RTP ter emitido um documento com linhas de orientação para a cobertura dos incêndios ? o primeiro até hoje existente do género. O texto propõe atitudes razoáveis e outras de senso comum, mas pode também servir para minimizar a importância dos incêndios. Mesmo assim, incrivelmente, no dia em apreço, que serve como exemplo, a Direcção de Informação conseguiu rasgar o seu próprio documento: apesar de se viver uma situação definida no texto como «absolutamente excepcional», o Telejornal ficou longíssimo de lhe dedicar os mais de 20% da sua duração que a DI da RTP aceitaria legítimo: apenas dedicou 3,8% aos incêndios activos; apesar de vários incêndios cumprirem as três condições que a DI da RTP considera justificativas de directos («o fogo desenrola-se há mais de 12 horas», «decorre numa área protegida ou de especial valor paisagístico e/ou ambiental» e «o fogo ameaça pessoas e bens») não foi feito nenhum directo; as três notícias sobre incêndios foram dadas em off (lidas pelo apresentador), o que significa, aplicando a terminologia desse documento, ter-se considerado que os incêndios referidos não tinham «especial perigosidade e relevância».
Em, resumo, a RTP não cumpriu as suas próprias orientações, quem cumpriu foram a SIC e a TVI.
Trata-se de uma política informativa totalmente deliberada por parte da DI da RTP. Quer a DI quer o governo sabem os danos que a informação sobre incêndios pode causar na apreciação pública dos políticos. No ano passado, o ministro da tutela, António Costa, responsabilizou as televisões pela opinião pública a este respeito. Mas as informações de que disponho indicam que o gabinete do primeiro-ministro deu instruções directas à RTP para se fazer censura à cobertura dos incêndios: são ordens directas do gabinete de Sócrates.
Essa preocupação do governo é também visível no bloqueio informativo sobre os incêndios às TVs e aos jornalistas em geral. Faltava muito para começar a época dos fogos e já a GNR e os comandos dos bombeiros tinham recebido ordens para não prodigalizarem os jornalistas com informação sobre novos incêndios (e se eles não informam é como se os incêndios não existissem fora da sua área de incidência) e também para bloquearem o acesso dos jornalistas à área de comando dos incêndios.
Isso mesmo foi referido no mesmo dia 12 de Agosto no Jornal da Noite. A segunda notícia do noticiário - a SIC quis dar-lhe grande relevo - referia este «bloqueio informativo» destinado a «esconder alguma coisa»: «os jornalistas são proibidos de filmar por perto, uma medida duvidosa do ponto de vista jurídico» e que, acrescentava a jornalista Sofia Pinto Coelho, contraria uma norma do próprio Serviço Nacional de Bombeiros e Protecção Civil.
Em resumo, o governo está a recorrer a métodos ilegítimos para impedir a informação livre aos cidadãos de Portugal sobre os incêndios, quer no terreno, quer nas instruções que dá à RTP. E a Direcção de Informação da RTP está, na prática informativa, a vergar-se por completo ao interesse político do governo do momento. Esta Direcção de Informação deve ser irradiada da RTP o mais depressa possível e deve retomar-se o difícil processo de independência que vigorou em 2002-2004. O operador de serviço público é do país, não é do governo.» (PÚBLICO)