(Artigo publicado na Dia D, 14/8/2006)
O Sr. Adalberto deve dinheiro ao Estado e não pagou no prazo legal. O Estado recorre aos tribunais para exigir o ressarcimento da dívida. O tribunal analisa as provas apresentadas pelo queixoso, ouve o que tem a dizer o Sr. Adalberto e delibera. Se o Estado tem razão e a dívida existe, o tribunal manda executar o Sr. Adalberto pela dívida, mais tempo perdido e custas processuais. Caso contrário, o estado indemniza o Sr. Adalberto e acabou a novela. Devia ser assim, rápido e simples. Por que obscura razão, ao longo deste processo, será necessário publicitar o calote do Sr. Adalberto na montra do Ministério?
A denúncia pública das dívidas fiscais é o óbvio reconhecimento por parte do Estado que os mecanismos que ele próprio criou para resolver estes problemas, não funcionam. E à falta de melhor, grita-se bem alto quem são os caloteiros, tal e qual a Dona Ermelinda da mercearia fazia há 50 anos, porque em terra pequena todos conhecem todos e já se sabe que mais ninguém fia a devedor com nome na praça.###
A falha do sistema não está apenas na legislação que permite sistemáticos atrasos por via de recursos, providências, incidentes e outros enrolos burocráticos com nome próprio. A juntar à lei escrita está a organização judicial.
Há tempos, fui testemunha num processo no Tribunal de Loures, num julgamento que ocorria 5 anos depois dos factos que lhe deram origem. O edifício, imponente e moderno, tinha um estacionamento, junto à escadaria principal, ironicamente ocupado com carcaças automóveis que apodreciam em agonia expectante de decisão que nunca chega a tempo. A tempo cheguei eu, pelas 9:30, mas mandaram-me aguardar. Após quarenta minutos de espera, iniciou-se o espectáculo intitulado ?Chamada das Testemunhas?. Meia dúzia de funcionários alinharam-se no átrio do tribunal e, um de cada vez, gritava pelo nome das testemunhas dos vários processos em julgamento e tentavam anotar as presenças numa folha. O processo durou mais de meia hora. Vários juízes e advogados conversavam produtivamente uns com os outros, enquanto aguardavam pelo fim do procedimento. Depois de sanadas as inúmeras confusões acústicas do ?quem chamou quem?, as testemunhas, agrupadas perto do respectivo funcionário, iniciavam uma caminhada em fila indiana para uma saleta em que as cadeiras só chegavam para metade dos presentes. O julgamento começou duas horas depois da hora para que as testemunhas tinham sido convocadas. Pouco passava da uma da tarde quando um outro funcionário informou metade das testemunhas para voltarem no próximo mês.
Qualquer empresa que adoptasse estes métodos de organização e de funcionamento, fecharia portas antes de vender um euro do que quer que fosse. Nas empresas, quem manda são os clientes. O que aconteceria a uma empresa que depois de fazer um cliente esperar 4 horas, lhe pedisse para voltar no mês seguinte?
Nos tribunais, o desperdício dos recursos humanos salta à vista, pelo tempo em que todos esperam por todos, o abuso da disponibilidade das testemunhas é o reflexo da displicência com que o sistema olha para os cidadãos e a organização parece viver mais para alimentar quem nela trabalha do que os seus clientes, as pessoas, as empresas e o próprio estado.
Os tribunais são um caos organizativo, amplificado nas ideias corporativas de que quem deve mandar nos tribunais são os juízes, tal como as escolas que devem ser geridas por professores ou os hospitais por médicos. E o sistema não muda nem vai mudar tão cedo, porque à mudança se opõem sempre todas as forças vivas do sector, com sindicatos e ordens profissionais à cabeça, perante a conivência ou a impotência dos vários ministros que vão desfilando ao ritmo das eleições e das remodelações governamentais.
Não é a lista de devedores ao fisco que deve ser afixada na vitrina do Ministério das Finanças. Uma lista com os Ministros da Justiça dos últimos 30 anos seria bem mais apropriada.