A excelente posta Uma Lástima de Juiz e a relacionada CARO JOSÉ,
com que o blasfemo CAA nos brindou recentemente, reconduz-nos - pelo menos, reconduziu-me a mim - a um dos debates ultimamente mais mediatizados entre nós: a Justiça ou, de forma mais apelativa, a «Crise da Justiça» (rectius, os mass media é que recriaram o debate, logo, em consequência, trata-se, pela sua própria natureza genética, de um debate mediático!).
Mas, mesmo aceitando a expressão em causa (« a Crise da Justiça»), importa contudo precisar os termos do problema. Importa mesmo, desde logo, verificar se existe efectivamente – e porventura, em que sentido – um problema ou, no mínimo, um problema novo! Naturalmente, num certo sentido – que não é aquele que é trazido à colação usualmente – a Justiça está (sempre esteve) e, simultaneamente, não está em crise. A Justiça jurídica, o «atribuir a cada um o que é seu», a Justiça enquanto valor que se pretende em concretização na vida social, é sobretudo um critério referencial da ordenação social. Em si mesma é, em absoluto, inatingível e, por isso, a aplicação das suas manifestações afigura-se sempre, por definição, inacabada, imperfeita. A sua aplicação é também, por outro lado, duplamente dinâmica: dinâmica porque inacabada, logo, aberta a um continuum de aperfeiçoamento, resultante humanamente de experiência acumulada; por outro lado ainda, dinâmica porque o Homem e a sociedade também o são, evoluem e consequentemente configuram permanentemente novos cenários, novos problemas, novas encruzilhadas (sobretudo nos tempos que correm, de vivência de uma sociedade técnica em mutação rápida e complexa, de permanente quebra de paradigmas) que implicam novas respostas da Justiça em acção (ou talvez, diferentes caminhos para a realização da mesma Justiça).
Mas deixemos estes caminhos que não nos levam a outra conclusão senão a de que, então, é não só inevitável, pela natureza das coisas, a existência permanente de uma “crise” da Justiça, como é bom que a aplicação da Justiça em acção tenha consciência dessa inevitabilidade....ou seja, (em sentido corrente e mediático) não há – ou, então, sempre houve... o que equivale ao mesmo – problema algum com a Justiça!
Quando se fala – e muito se tem falado entre nós, recentemente e a reboque de uma lógica mediática (e, neste ponto, ainda bem!) – de «Crise da Justiça», o que habitualmente se pretende discutir é a existência de um mau funcionamento na máquina administrativa/estadual de aplicação do Direito (ver postas já referidas e ainda “OS 29 ARGUIDOS DO CASO DA PONTE DE ENTRE-OS-RIOS FORAM DESPRONUNCIADOS”). É a própria aplicação do Direito (logo, da Justiça jurídica) que se questiona.
Na medida em que tal pode significar, em concreto, uma denegação de Justiça para os cidadãos, na medida em que tal denegação nos pode afectar a todos e prejudicar, a qualquer momento, os nossos interesses e direitos, tal mau funcionamento da aplicação do Direito é uma causa forte de insegurança, generalizadamente sentida por todos nós. Noutra perspectiva, se falamos de um sistema que é (quase) exclusivamente estadual, que se identifica funcionalmente com aquilo que é uma das traves-mestras definidoras e justificativas do Estado, então, as deficiências de tal sistema minam a credibilidade do próprio Estado. No fundo, é o Estado de Direito Democrático/ democracia que são afectados sempre que há problemas com o sistema de aplicação do Direito.
Porém, tal sistema de aplicação do Direito (e não discutindo, por agora, o próprio Direito/ordem jurídica estatuída, existente - legislada, no nosso caso - num determinado momento) integra várias partes componentes, vários corpus de actores ou agentes, assim como várias Instituições. Ora, é a Instituição judicial (sistema judicial) e os agentes (recentemente, começou a ser utilizada a errónea expressão “agentes de justiça”) que a integram directa e indirectamente, que se tem especialmente discutido.
Dito de outro modo, é sobretudo do funcionamento dos Tribunais estaduais e da acção daqueles que neles principalmente operam – os magistrados – que se tem, entre nós, falado.
Pergunta-se, então, se estamos ou não confrontados com uma crise no funcionamento do sistema judicial?
Ora, se este sistema é eminentemente estadual, se atravessamos tempos conturbados (“tempos interessantes”, como dizem os chineses!) de mudança que nos trazem, entre outras coisas, a problematização da figura do Estado clássico, o declínio do paradigma estadual, então, é previsível que as dificuldades e provações sentidas por tal figura se reflictam num dos seus sistemas mais importantes. Ou seja, a crise do sistema judicial poderá ser (será também necessariamente) a actual “crise do paradigma do Estado”.