24.3.04

PARA QUE SERVE O ESTADO?



Um amigo propôs-me que debatêssemos o tema em epígrafe, que ele considera o cerne da política contemporânea. Eu colocaria a questão noutros moldes, reformulando a pergunta nestes termos: a quem serve actualmente o Estado?

Obviamente que partimos os dois da convicção de que o Estado não é mais do que a organização política da comunidade, através da instituição contratual de um aparelho de administração que exerce um poder público. Somos ambos naturalistas no que toca à natureza desse aparelho, o mesmo é dizer que o Estado, cada Estado concreto e não sob uma forma generalista e abstracta, deve a sua existência e a sua permanência à vontade expressa dos cidadãos sobre quem exerce prerrogativas de autoridade.
A origem do Estado encontra-se, portanto, nas mesmas razões que levam os homens a associarem-se em formas societárias, seja para produzir bens e serviços, seja para os comercializar, seja para qualquer outra finalidade que entendam promover em conjunto. O objecto deste contrato social está, como repararam os clássicos, na prestação de serviços aos cidadãos que estes provavelmente desempenhariam em piores condições, nomeadamente garantindo-lhes a sua segurança e a possibilidade de desfrutarem em liberdade daquilo que é seu, o mesmo é dizer, da sua propriedade.
Só que, o século XX introduziu alterações substanciais ao objecto desse contrato, ampliando-o sem o consentimento dos principais interessados que são os cidadãos outorgantes. Sob bons pretextos e a coberto de boas intenções, o Estado começou a prestar outros serviços que não constavam do contrato original, ao ponto de se dispor a produzir bens e serviços que, desde sempre, estiveram a cargo dos cidadãos. Vejam-se os exemplos da educação, dos transportes, da banca, dos seguros sociais (segurança social), da comunicação social, entre muitos outros, para não referirmos exemplos caricatos como aquele loja de flores de que o Estado português foi proprietário e administrador, em virtude das nacionalizações do PREC, nos idos de 1975.
Para o desempenho destas novas finalidades contratuais, às quais a doutrina política favorável subtraiu a necessidade de expresso consentimento dos destinatários pela verificação do silêncio, o Estado do século XX contratou funcionários, ampliando imensamente o seu pessoal administrativo e assalariado. Para lhes pagar, uma vez que, em regra, por deficiente gestão, a exploração desses sectores é deficitária, teve de cobrar aos cidadãos mais impostos. Fundamenta essa imposição como uma necessidade, argumentando que o Estado presta melhor esses serviços à comunidade do que o fariam os cidadãos no exercício da actividade de livre comércio.

Ora, nada disto se encontra provado: nem que a maioria dos cidadãos tenha desejado ou deseje que o Estado desempenhe aquelas e outras funções, muito menos que, ao fazê-lo, o faz melhor do que o fariam os particulares. Pelo contrário, está demonstrado à saciedade que os critérios de gestão desses sectores não são empresariais mas políticos, não visam uma boa exploração de recursos tendo em vista os fins naturais da actividade, mas o seu aproveitamento eleitoral ou a satisfação de clientelas partidárias. Como, também, por falta de recursos financeiros utilizados em actividades que não deveriam dizer respeito ao Estado, aquelas que são as suas funções contratuais – a segurança dos cidadãos, as garantias de bom uso da sua propriedade – estão longe de serem eficazmente asseguradas.

Por conseguinte, podemos dizer que o Estado contemporâneo desrespeitou o contrato social que há muito outorgara. Entrou em incumprimento contratual. Em consequência do que, nos parece que a outra parte – os cidadãos – lhe não deva qualquer obediência. Não se mantêm, a nosso ver, as obrigações contratuais do primeiro outorgante que somos todos nós, aqueles que instituíram o Estado como organização política, lhe transferiram poderes e mantêm o seu funcionamento com o produto dos seus rendimentos, cobrados por via tributária, por incumprimento contratual atribuído ao segundo outorgante. Se alguém com quem contratamos um serviço, por exemplo, de pintura de uma casa, o não fizer ou o fizer deficientemente, não estamos obrigados a cumprir com a nossa prestação contratual, isto é, o pagamento de um serviço que não foi prestado. O mesmo se deveria passar na relação contratual estabelecida com o Estado.
O problema, porém, é que este último desenvolveu uma máquina coerciva que lhe permite impor todas as arbitrariedades que entenda, legitimado pelo uso quase formal do voto universal e democrático. Na verdade, actualmente, a democracia tem um valor exclusivamente negativo, importante sem dúvida, que nos permite afastar do governo quem lá se encontra, sem recurso a métodos violentos. Mas esgota-se nisto. Encontrar no voto um fundamento legitimador para o uso do poder é, hoje em dia, com a quase absoluta ausência de limites para o exercício desse poder, um excesso.

E aqui estamos na reformulação da pergunta inicial: a quem serve este Estado? Aos indivíduos não, seguramente. Às classes políticas e ao funcionalismo público, aparentemente, sim. Mas, em rigor, nem a estes é de muita utilidade, já que, incapazes, os primeiros, de encontrar soluções que agradem a quem vota, perdem o poder com facilidade, enquanto que os segundos mantêm-se numa mediocridade profissional e salarial que lhes condiciona as existências. Não interessa, portanto, a ninguém.
Como se poderá sair disto, como abandonar o Wellfare State no grau de dependência que ele gerou, é já outra questão. A ficar para uma outra altura.