9.3.04

PARA ACABAR DE VEZ COM O MITO



Num exercício muito português, preparamo-nos para declarar o Doutor Cavaco Silva homem santo e virtuoso, a quem, por destino ditado do alto, cabe a maçada de, de tempos a tempos, nos «pôr na ordem» e governar. Os portugueses são, foram sempre, useiros e vezeiros na nobre arte da submissão aos governantes, sejam eles quem forem, chamem-se como se chamarem, desde que tenham na mão esquerda a vara do poder e na direita uma caneta para assinar cheques. Poucos dias antes do povo português, o bom povo português, proclamar nas ruas o seu amor ao general Spínola e o seu ódio ao «regime fascista» que o oprimira durante décadas, manifestara-se entusiasmado e leal ao, então, Presidente do Conselho de Ministros, o Professor Marcello Caetano, em apoteótica manifestação de fervor pátrio, no Estádio Nacional. E os exemplos de atitudes semelhantes, como todos sabemos, poderiam ser multiplicados quase até ao infinito.

Ora, nas antevésperas de mais um exercício de sebastianismo redentor, desta vez, para júbilo de muitos, com o rei vivo, adivinhando-se os sarilhos que por aí virão e que, em nossa opinião, levarão inevitavelmente a uma mudança do sistema de governo, com reforço da componente presidencial, há que relembrar quem é este «homem providencial» que muitos se preparam para voltar a endeusar.
Sem dúvida que, como governante, o Prof. Aníbal Cavaco Silva teve muitos aspectos positivos: uma certa ordem nas finanças públicas, algumas privatizações, um módico de respeitabilidade internacional, sobretudo pelo comportamento nas Comunidades Europeias. O eleitorado, de resto, reconheceu-lhe mérito, tendo-lhe, pela primeira vez no regime democrático, confiado duas maiorias parlamentares absolutas a um partido único.

Mas, há que recordá-lo, foi também sob o governo deste homem, que sempre se afirmou social-democrata e keynesiano, que sucederam coisas menos agradáveis. Para quem, como eu, viveu esse período, e deixando à margem os «escândalos» que o jornal do Dr. Portas criou, entre os quais os da Dra. Leonor Beleza e do seu irmão, do Dr. Miguel Cadilhe ou do Dr. Duarte Lima, não me esqueço de algumas delas. Cito, de memória, meia dúzia.
Desde logo, o ambiente claustrofobico em que o país vivia: quem não fosse do PSD, quem não tivesse o cartão laranja, não era bom chefe de família. Nunca Portugal, desde a implantação do regime democrático, esteve tão enfeudado a uma lógica de clientela partidária como nesse tempo. Era o famoso «Cavaquistão» ou a «Cavacolândia», à sopas do qual até figuretas como os Drs. Vilaverde Cabral e Eduardo Prado Coelho se alimentaram. Uma beleza.
A esta «cidade do sol» laranja, terra prometida de muitos manás, correspondia um «novo homem português», um lusitano de raça pura e dura, que se revia na geração juvenil do futebol, nos JEEP’s (Jovens Empresários de Elevado Potencial) e, em suma, no «dinamismo empresarial nacional». Uma parolice sem nome e de consequências alucinogénias graves. Como se viu, depois da boda terminar e das canas dos foguetes nos terem caído em cima.
Por isto se dizia que o PSD fazia lembrar o PRI mexicano e que a vida política portuguesa caminhava a passos largos para a mexicanização. As situações de compadrio eram mais que muitas e escandalosas. Os famosos boys fizeram com que a administração pública crescesse desalmadamente, a níveis também nunca vistos, que o PS herdou e, obviamente, como partido socialista que é, manteve e ampliou. Mas, é bom que se diga, quando o Prof. Cavaco se refere ao Estado português como «o monstro», há que dizer que foi ele um dos seus principais criadores.

Mexicanização que fez do PSD de então, um partido arrogante, sombranceiro, em suma, insuportável. A coisa era de tal modo que, inclusivamente, o líder do partido, que era Primeiro-Ministro, se recusava a debater os problemas do país com o líder da oposição, o secretário-geral do PS. Esta falta de humildade foi, aliás, muito bem explorada por Guterres, que soube tirar de uma imagem de homem vulgar, os necessários dividendos políticos.
Lembro-me, também, na linha intervencionista que sempre o caracterizou, do célebre episódio da Bolsa, quando ele, Primeiro Ministro de Portugal, resolveu estoirar com ela, numa alocução televisiva. Ainda hoje, a Bolsa portuguesa é o que é. Bem haja, Prof. Cavaco Silva.
Como também não me esqueço, ao contrário do que ficou a pairar no imaginário nacional, que alguns dos piores governos do pós-25A a ele são devidos. Foram pungentes as suas últimas remodelações governamentais, feitas com os secretários de Estado dos ministros que se demitiam ou eram demitidos, com gente pouco ou nada conhecida e que, de resto, demonstrou não ter qualidade para o exercício de funções de governo.
Por fim, há que reconhecer que, graças à sua «técnica dos tabus», própria dos príncipes esclarecidos, que não têm que prestar contas sobre o império da sua vontade, o poder caiu na rua: o episódio dos feriados de Carnaval e do bloqueio da ponte foram exemplares. Nomeadamente este último, que levou a agitação nas ruas a níveis nunca vistos depois do Verão de 75.

Por saber que iria perder as eleições, Cavaco não se recandidatou. Ao contrário do que agora (e já na altura) diz, não foi por estar cansado da política. Se assim tivesse sido, como explicar a sua candidatura, escassos meses após abandonar S. Bento, a Belém? Evidentemente, Cavaco nunca imaginou que uma figura pardacenta como Sampaio as ganhasse, como nunca duvidou que perderia as legislativas, caso se recandidatasse.
Admito, como referi no começo, que Cavaco tenha feito coisas bem feitas. Mau era que não o tivesse, com duas maiorias parlamentares absolutas consecutivas. Com um ciclo económico internacional muito favorável. Com um ambiente internacional muito reformista e privatizador. Com fundos comunitários abundantes. E, há que recordá-lo, com Portugal a seus pés. Como, ao que parece, se prepara para voltar a ter.