3.3.04

O debate no Parlamento

Tive a oportunidade, há uma hora atrás, de ouvir algumas intervenções no debate sobre a despenalização do aborto, que decorre no parlamento.
Odete Santos, numa das suas melhores intervenções de sempre, defendeu o projecto do seu partido com argumentos sensatos, ainda que, embora dizendo não querer entrar na discussão sobre o "início da vida humana", o tenha acabado por fazer. Concordo porém com a conclusão: não cabe ao parlamento imiscuir-se numa querela puamente científica (há vida humana logo a seguir à concepção, um mês, dois ou cinco mais tarde ou só com o nascimento?).
O problema, porém, não é o da equiparação tout court da "vida embrionária" (ou "vida intra-uterina", como lhe chama a lei) à "vida humana". Um aborto não é nem nunca foi punido na legislação portuguesa como homicídio.
O que se discute é se a tal vida embrionária merece ou não tutela (autónoma e distinta da "vida Humana"), nomeadamente no âmbito penal.
Entendo que a lei (penal) que temos é suficiente, ainda que mal entendida e aplicada pelos Tribunais. Freitas do Amaral veio defender há umas semanas a introdução de uma presunção de "estado de necessidade desculpante" da mulher que pratica voluntariamente um aborto (ou, como agora se diz, uma interrupção voluntária da gravidez). O estado de necessidade descupante está, há muito tempo, previsto no Código Penal, aplicando-se a todos os crimes praticados "para afastar um perigo actual e não removível de outro modo, que ameace a vida, a integridade física, a honra ou a liberdade do agente ou de terceiro, quando não for razoável exigir-lhe, segundo as circunstâncias do caso, comportamento diferente" (art. 35.º, n.º 1). Quando se verifique tal estado, há crime (há ilícito), mas não há culpa, logo não pode haver pena. Está no Código penal e pode aplicar-se, se calhar, a muitos dos abortos praticados em Portugal.

Argumentava Odete Santos que o aborto (clandestino) é um grave problema de saúde pública. É provável que assim seja. Mas a simples depenalização não resolve gande parte do problema. A questão que se coloca é outra. Despenalizando-se a conduta (pelo menos a da mulher) poderá (terá, deverá) a IVG ser efectuada no Serviço Nacional de Saúde, às custas do erário público? Ou terá de ser feita fora do sistema público, isto é, em clínicas e hospitais privados, às custas de quem a elas recorra ou dos seguros de saúde que porventura cubram tal eventualidade? Muitas das mulheres eventualemente integráveis no tal "estado de necessidade desculpante" continuarão a não ter acesso à IVG em segurança.
Por isso, se não for o SNS a assumir a tarefa, os abortos de "vão de escada" e os consequentes problemas de saúde pública vão continuar.
Mas na hipótese contrária (a do SNS assumir a responsabilidade), a decisão de despenalizar e legalizar a IVG deixa de ser um problema do "foro íntimo" ou do "direito de escolha" da mulher, para passar a ser um problema de todos os contribuintes.