Ainda não pude ver o "The Passion...". Mas já devo ter lido para cima de 3 dezenas de críticas ao filme, algumas delas ataques violentíssimos a exigir a sua pura e simples exclusão de todas as salas de cinema. Outras, panegíricos irracionais, incomodaram-me com o ar bafiento de sacristia que exalavam.
Por causa deste filme e da polémica que provocou cheguei ao extremo de me exceder verbalmente com alguns dos blogues de que mais gosto.
Suponho que um dos traços mais inquietantes do meu modo de ser reside em adorar refregas, debates, discussões. São restos da adolescência, nunca perdida, feita de noites a discutir com outros como eu tudo o que pudesse ser assunto. E, depois, correr para casa para fossar nos livros - ainda não havia net - as âncoras das razões vitoriosas que se atiravam à cara do antagonista de ocasião, no dia seguinte.
Estava com algum receio em ver o filme. De ser obrigado a reconhecer que aqueles que o criticam superam os que o defendem.
Felizmente, existe o Pedro Mexia. Esta sua crítica - de longe a mais equilibrada que li - sossegou-me os medos.
Mas não deixei de ser quem sou. Por isso não vou deixar passar um artigo de António Sérgio Pessoa, no Público de quinta-feira.
Depois de cobrir com o atributo de ignorantes todos os que julgam que aquilo que tem sido afirmado a propósito do "The Passion..." resulta da interpretação literal dos Evangelhos, ASP informa-nos das discrepâncias entre eles e das suas várias «incorrecções históricas» (embora ASP argumente com factos "históricos" que apenas são referenciados nos tais Evangelhos, como a entrada triunfante de Jesus em Jerusalém e quando descreve o seu «ministério»).
Lembrei-me que numa posta escrita no Mata-Mouros tinha chegado a perguntar se, por absurdo, não seria melhor começarmos a pensar em corrigir a letra dos próprios Evangelhos. Quase que julgo ver no artigo de ASP a inclinação para esta hipótese ridícula dado o seu afã em querer justificar as tais «incorrecções» pelo contexto anti-judeu (seria pró-romano???) que se viveu após a queda de Jerusalém e a destruição do segundo Templo por Tito, em 70 d.c., durante o domínio de Vespasiano.
A tese de ASP é que os Evangelhos, ao descreverem o martírio de Jesus, são um esforço de desresponsabilização dos romanos e de culpabilização dos judeus. Mas, num artigo que se pretende sobranceiramente científico, ASP não apresenta uma só prova histórica da sua veracidade. É a sua opinião fragilmente alicerçada no argumento genérico e excessivamente vago do "contexto" histórico em que os Evangelhos foram escritos.
Depois, ASP mete-se em terrenos diferentes: os do direito romano. Assegura que «Jesus foi condenado a uma pena romana pelo crime político de insurreição contra o poder romano, à luz do direito romano e os judeus apenas intervieram na medida em que um poderoso partido judeu o denunciou ao poder romano naquilo que pensavam ser os seus intuitos políticos de tomada do poder nessa Páscoa. É tudo o que a História pode concluir».
Acontece que o direito romano, naquela época, só se aplicava a quem detinha a cidadania romana. Só os romanos eram julgados através do direito romano, os outros, os gentios, estavam subordinados às suas próprias fontes de direito e às autoridades locais que as aplicavam. Essa foi a grande diferença entre o "julgamento" de Jesus, judeu, e o de S. Paulo, cuja família havia adquirido a cidadania romana, que exigiu ser julgado mediante o direito romano como era seu privilégio.
Os romanos só condenavam gentios se estes cometessem crimes de insubordinação contra o poder de Roma. Mas nem nesses casos se pode falar na aplicação de "direito romano".
Assim, parece-me que a tese que consta dos Evangelhos, com todas as eventuais discrepâncias e incorrecções históricas, faz todo o sentido:
- um profeta judeu começa a pregar para judeus algo que só os judeus entenderiam; alguns de entre eles conseguiram a prisão desse profeta; no entanto, a sua execução pelo poder judeu secular (Herodes) ou religioso (Sinédrio) seria politicamente perigosa dentro do quadro político exclusivamente judeu; então, para descarregarem o problema, os judeus (religiosos) quiseram convencer os romanos que o profeta representava uma ameaça para o poder romano; os romanos chamaram-no e aperceberam-se imediatamente que estavam na presença de um místico que não interessava minimamente ao poder de Roma (o diálogo entre Pilatos e Jesus é magnífico e elucidativo); os romanos não queriam saber do assunto mas os judeus do Templo forçaram a condenação de Jesus para evitar que os adeptos do profeta os culpassem da sua morte; provavelmente, visando manter um clima de paz política com as autoridades religiosas locais, Pilatos deixou que o profeta fosse sacrificado.
Donde, os romanos executaram-no, mas os adversários religiosos de Jesus criaram as condições para que isso acontecesse.
Para além dos Evangelhos, há provas históricas para esta tese? Não! Mas, ainda assim, julgo que os indícios se inclinam mais para esta última do que aquela que ASP apresentou. Principalmente pelo contexto. E pelo direito.