1. Com a honrosa excepção do breve período de tempo ocupado pelos primeiros anos dos governos de Aníbal Cavaco Silva, em que a conjuntura internacional e algumas medidas tomadas permitiram que o país conhecesse um surto desenvolvimentista, Portugal tem vivido em crise económica e social permanente, ao longo dos mais de trinta anos que leva já a III República.
Em homenagem à verdade histórica, diga-se que a crise portuguesa tem raízes mais profundas, que em muito ultrapassam esse limitado ciclo recente da nossa vida colectiva. Efectivamente, se tivermos em atenção todo o século XX anterior a 1974, constatamos que o país não se desenvolveu ou que pouco se desenvolveu se comparado com os demais países europeus ocidentais. Se olharmos para as suas primeiras décadas, veremos um país em ruptura financeira permanente, que justificou um regime autocrático e ditatorial de quarenta anos.
No século que o antecedeu, o panorama não foi muito melhor: invasões militares, guerra civil, partidarização excessiva da vida política e o «devorismo» dos recursos nacionais pelas elites dirigentes no pós-34, instabilidade governativa e institucional, com a questão da forma monárquica ou republicana do Estado a tomar conta do último quartel da centúria.
Pode dizer-se, sem medo de errar, que Portugal viveu pelo menos os últimos duzentos anos em crise económica profunda, que nos condicionou no desenvolvimento e no bem-estar da população, originando um permanente incómodo social grave. Portugal é um país pobre, que foi perdendo as sucessivas oportunidades que a história lhe foi dando para melhorar ou, vá lá, para conter um empobrecimento galopante. Nos últimos duzentos anos, essas oportunidades foram o Brasil, a África e as Comunidades Europeias. Em nenhum dos três casos soubemos aproveitar as potencialidades que o destino nos foi dando e, por isso, ao contrário do que seria normal, fomos sempre empobrecendo.
Acontece que, quando os povos e as sociedades não se bastam a si mesmos, frequentemente recorrem à figura tutelar do «salvador da pátria», do «homem providencial» que há-de fazer por nós aquilo que somos incapazes de fazer por nós próprios. No século passado, à sombra do qual continuamos a viver a nossa vida política, esses homens foram, pelo menos, quatro: Afonso Costa, António Oliveira Salazar, Francisco Sá Carneiro e Aníbal Cavaco Silva. Dos dois primeiros e do último conhecem-se a obra, as decisões, os erros, em suma, a história. De Francisco Sá Carneiro tudo, ou praticamente, ficou por saber.###
2. Sá Carneiro notabilizou-se como político, mas sobretudo enquanto homem da oposição: ao regime de Salazar e de Marcello Caetano, primeiro, e, depois do 25 de Abril, sucessivamente ao PREC e ao socialismo de Mário Soares. A sua acção como governante foi interrompida prematuramente, praticamente no começo, pelo que é impossível fazer a sua avaliação substantiva. Porém, não custa, nem ofende, tentar imaginar o que ela poderia ter sido.
Sá Carneiro assumia-se, ainda no consulado marcellista, como um «liberal». Obviamente que, ao tempo, a expressão não tinha na política portuguesa o mesmo conteúdo ideológico que hoje lhe damos. Ser, nesse tempo, «liberal» era definir-se por antinomia em relação ao regime autoritário vigente. Um «liberal» defendia a liberdade de expressão, a existência não condicionada de partidos políticos e de eleições, o fim da polícia política e da censura, e a aproximação aos modelos sociais e económicos da Europa Ocidental, isto é, comunitária. Não envolvia qualquer programação relativa às funções do Estado, nem esse era, à época, tema sobre o qual frequentemente se meditasse.
Quando veio o 25 de Abril, Sá Carneiro disse-se «social-democrata». Também aí e embora ele afirmasse o contrário, a social-democracia europeia reunia-se na na Internacional Socialista, e, muito por influência de Mário Soares, não lhe reconheceria essa qualidade. De modo que, nessa altura, Portugal era o único país da Europa democrática em que a alternância política se adivinhava entre dois grandes partidos que se afirmavam da social-democracia e do socialismo democrático: o PS e o PPD, mais tarde, PPD-PSD. À esquerda, o Partido Comunista, à direita, a democracia-cristã reunida no CDS, ambos reduzidos a franjas limitadas de eleitorado.
Esta bizarra situação só se começou a desvanecer quando Mário Soares assumiu a chefia do I Governo Constitucional. Na verdade, Sá Carneiro ofereceu-lhe muito cedo oposição, porque considerou o seu governo pouco «liberalizador» e muito estatista. Quando a Aliança Democrática chegou ao poder, programa de reformas que iniciou foi precisamente no sentido de limitar o sector público do Estado (ao tempo, esmagador) e devolver à sociedade civil as suas funções naturais que lhe tinham sido espoliadas. O fim da malfadada reforma agrária e a devolução das terras aos seus anteriores proprietários foi um passo importante e simbólico, quer pelo respeito que a propriedade privada merecia ao novo governo (uma heresia!), quer pela intenção explícita de colocar o Estado dentro de limites determinados.
Calcula-se que se seguiriam outras reformas de igual sentido, provavelmente as que Cavaco Silva fez uma década depois. Porém, como várias vezes reclamou, Sá Carneiro encontrava-se refém de uma Constituição que não lhe permitia actuar como entendia, e extraordinariamente limitado por um poder presidencial que se tinha como um dos pilares do sistema de governo. Por isso, ele reclamava a urgente revisão da Constituição e a eleição de um outro Presidente da República. Neste último caso, apostou na candidatura de um militar prestigiado - o General Soares Carneiro - e anunciou que se demitiria caso o seu candidato perdesse as eleições.
3. O mito pessoal de Francisco Sá Carneiro é tão intenso que deixou o país sem saber o que faria no dia seguinte à derrota presidencial. Sá Carneiro morreu no fim da campanha e nem isso provocou qualquer reviravolta emocional no resultado das eleições. O que ele teria feito com a sua demissão anunciada, caso acontecesse a derrota eleitoral que veio a suceder à sua morte, ninguém poderá dizer. Freitas do Amaral, seu Vice-Primeiro Ministro, referiu que os dois tinham planeado afastarem-se da vida política activa. Não é, diga-se, pelo menos no que toca ao falecido Primeiro-Ministro, uma hipótese que se possa levar muito a sério. Sá Carneiro tinha a paixão da política e, como todas as paixões, só a morte lhes põe termo. O que ele teria feito a seguir é um enigma. Como se teria relacionado com Mário Soares, com o próprio partido a que presidira e que fundara, com a integração comunitária, com a evolução do mundo, nomeadamente, com o ciclo conservador que se iniciou na Grã-Bretanha e nos EUA ao tempo da sua morte, ficou por saber-se. Como, também, a morte chegou a tempo de perdurar o seu mito e de lhe não pôr fim.
Nos últimos duzentos anos, Francisco Sá Carneiro foi o único «homem providencial» que o país não tratou de desmentir.
* Adaptação de um «post» publicado no Blasfémias, em 17.X.2005, em forma de homenagem a Francisco Sá Carneiro, no dia em que completaria 72 anos de idade.
Em homenagem à verdade histórica, diga-se que a crise portuguesa tem raízes mais profundas, que em muito ultrapassam esse limitado ciclo recente da nossa vida colectiva. Efectivamente, se tivermos em atenção todo o século XX anterior a 1974, constatamos que o país não se desenvolveu ou que pouco se desenvolveu se comparado com os demais países europeus ocidentais. Se olharmos para as suas primeiras décadas, veremos um país em ruptura financeira permanente, que justificou um regime autocrático e ditatorial de quarenta anos.
No século que o antecedeu, o panorama não foi muito melhor: invasões militares, guerra civil, partidarização excessiva da vida política e o «devorismo» dos recursos nacionais pelas elites dirigentes no pós-34, instabilidade governativa e institucional, com a questão da forma monárquica ou republicana do Estado a tomar conta do último quartel da centúria.
Pode dizer-se, sem medo de errar, que Portugal viveu pelo menos os últimos duzentos anos em crise económica profunda, que nos condicionou no desenvolvimento e no bem-estar da população, originando um permanente incómodo social grave. Portugal é um país pobre, que foi perdendo as sucessivas oportunidades que a história lhe foi dando para melhorar ou, vá lá, para conter um empobrecimento galopante. Nos últimos duzentos anos, essas oportunidades foram o Brasil, a África e as Comunidades Europeias. Em nenhum dos três casos soubemos aproveitar as potencialidades que o destino nos foi dando e, por isso, ao contrário do que seria normal, fomos sempre empobrecendo.
Acontece que, quando os povos e as sociedades não se bastam a si mesmos, frequentemente recorrem à figura tutelar do «salvador da pátria», do «homem providencial» que há-de fazer por nós aquilo que somos incapazes de fazer por nós próprios. No século passado, à sombra do qual continuamos a viver a nossa vida política, esses homens foram, pelo menos, quatro: Afonso Costa, António Oliveira Salazar, Francisco Sá Carneiro e Aníbal Cavaco Silva. Dos dois primeiros e do último conhecem-se a obra, as decisões, os erros, em suma, a história. De Francisco Sá Carneiro tudo, ou praticamente, ficou por saber.###
2. Sá Carneiro notabilizou-se como político, mas sobretudo enquanto homem da oposição: ao regime de Salazar e de Marcello Caetano, primeiro, e, depois do 25 de Abril, sucessivamente ao PREC e ao socialismo de Mário Soares. A sua acção como governante foi interrompida prematuramente, praticamente no começo, pelo que é impossível fazer a sua avaliação substantiva. Porém, não custa, nem ofende, tentar imaginar o que ela poderia ter sido.
Sá Carneiro assumia-se, ainda no consulado marcellista, como um «liberal». Obviamente que, ao tempo, a expressão não tinha na política portuguesa o mesmo conteúdo ideológico que hoje lhe damos. Ser, nesse tempo, «liberal» era definir-se por antinomia em relação ao regime autoritário vigente. Um «liberal» defendia a liberdade de expressão, a existência não condicionada de partidos políticos e de eleições, o fim da polícia política e da censura, e a aproximação aos modelos sociais e económicos da Europa Ocidental, isto é, comunitária. Não envolvia qualquer programação relativa às funções do Estado, nem esse era, à época, tema sobre o qual frequentemente se meditasse.
Quando veio o 25 de Abril, Sá Carneiro disse-se «social-democrata». Também aí e embora ele afirmasse o contrário, a social-democracia europeia reunia-se na na Internacional Socialista, e, muito por influência de Mário Soares, não lhe reconheceria essa qualidade. De modo que, nessa altura, Portugal era o único país da Europa democrática em que a alternância política se adivinhava entre dois grandes partidos que se afirmavam da social-democracia e do socialismo democrático: o PS e o PPD, mais tarde, PPD-PSD. À esquerda, o Partido Comunista, à direita, a democracia-cristã reunida no CDS, ambos reduzidos a franjas limitadas de eleitorado.
Esta bizarra situação só se começou a desvanecer quando Mário Soares assumiu a chefia do I Governo Constitucional. Na verdade, Sá Carneiro ofereceu-lhe muito cedo oposição, porque considerou o seu governo pouco «liberalizador» e muito estatista. Quando a Aliança Democrática chegou ao poder, programa de reformas que iniciou foi precisamente no sentido de limitar o sector público do Estado (ao tempo, esmagador) e devolver à sociedade civil as suas funções naturais que lhe tinham sido espoliadas. O fim da malfadada reforma agrária e a devolução das terras aos seus anteriores proprietários foi um passo importante e simbólico, quer pelo respeito que a propriedade privada merecia ao novo governo (uma heresia!), quer pela intenção explícita de colocar o Estado dentro de limites determinados.
Calcula-se que se seguiriam outras reformas de igual sentido, provavelmente as que Cavaco Silva fez uma década depois. Porém, como várias vezes reclamou, Sá Carneiro encontrava-se refém de uma Constituição que não lhe permitia actuar como entendia, e extraordinariamente limitado por um poder presidencial que se tinha como um dos pilares do sistema de governo. Por isso, ele reclamava a urgente revisão da Constituição e a eleição de um outro Presidente da República. Neste último caso, apostou na candidatura de um militar prestigiado - o General Soares Carneiro - e anunciou que se demitiria caso o seu candidato perdesse as eleições.
3. O mito pessoal de Francisco Sá Carneiro é tão intenso que deixou o país sem saber o que faria no dia seguinte à derrota presidencial. Sá Carneiro morreu no fim da campanha e nem isso provocou qualquer reviravolta emocional no resultado das eleições. O que ele teria feito com a sua demissão anunciada, caso acontecesse a derrota eleitoral que veio a suceder à sua morte, ninguém poderá dizer. Freitas do Amaral, seu Vice-Primeiro Ministro, referiu que os dois tinham planeado afastarem-se da vida política activa. Não é, diga-se, pelo menos no que toca ao falecido Primeiro-Ministro, uma hipótese que se possa levar muito a sério. Sá Carneiro tinha a paixão da política e, como todas as paixões, só a morte lhes põe termo. O que ele teria feito a seguir é um enigma. Como se teria relacionado com Mário Soares, com o próprio partido a que presidira e que fundara, com a integração comunitária, com a evolução do mundo, nomeadamente, com o ciclo conservador que se iniciou na Grã-Bretanha e nos EUA ao tempo da sua morte, ficou por saber-se. Como, também, a morte chegou a tempo de perdurar o seu mito e de lhe não pôr fim.
Nos últimos duzentos anos, Francisco Sá Carneiro foi o único «homem providencial» que o país não tratou de desmentir.
* Adaptação de um «post» publicado no Blasfémias, em 17.X.2005, em forma de homenagem a Francisco Sá Carneiro, no dia em que completaria 72 anos de idade.