Por outro lado, no caso das democracias, as guerras injustas e os crimes de guerra e crimes contra a humanidade são ainda mais intoleráveis do que no caso dos regimes autoritários, justamente porque põem em causa a dignidade e a legitimidade da própria democracia. É por isso que Guantánamo é mais inadmissível do que as prisões políticas castristas; é por isso que os métodos repressivos de Israel nos territórios ocupados e a destruição punitiva do Líbano são mais censuráveis do que a violência dos movimentos extremistas islâmicos.
Ao contrário do que diz o Tiago Mendes, esta passagem tem dois problemas lógicos:
Problema 1 - Vital Moreira diz que determinados comportamentos são mais intoleráveis do que outros, mas não nos diz para quem. Ora, como a "tolerabilidade" é um conceito subjectivo, requer um sujeito que falta ao texto de Vital Moreira, pelo que este é no mínimo ambíguo. Como é óbvio, para as vítimas não deve fazer grande diferença estar preso em Guantanámo ou nas prisões castristas e também me parece óbvio que os israelitas toleram muito mais facilmente o bombardeamento do Líbano por Israel do que o bombardeamento de Israel pelos movimentos extremistas islâmicos.
O que Vital Moreira terá muito provavelmente em mente é a posição de pessoas um pouco mais imparciais com determinados valores a que ele provavelemente chamaria democráticos. Mas isso só torna o argumento circular. Quem, como Vital Moreira tem determinados valores que implicam que é crucial que as democracias se comportem de uma determinada maneira considerará determinados comportamentos das democracias intoleráveis. Mas quem não partilhar dos valores que Vital Moreira tem em mente, como é o meu caso, não tem motivos usar padrões diferentes para avaliar democracias e ditaduras.
Problema 2: Uma análise lógica tem que se basear em categorias estáveis. Uma democracia é definida com base em determinadas características e quando estas características mudam deixamos de ter uma democracia passamos a ter outra coisa qualquer. Ora, o argumento de Vital Moreira procura justificar a aplicação de um duplo padrão às categorias "democracia" e "ditadura" alegando que, no caso das democracias, determinadas acções põem em causa a pertença à categoria "democracia". O problema deste argumento está no facto de que um país que cometa actos que não são próprios da categoria "democracia" já deixou de pertencer à categoria "democracia" há muito tempo, se é que alguma vez pertenceu.
O que é interessante nisto é que os países têm diferentes níveis de democraticidade, mas nenhuma é uma democracia que Vital Moreira consideraria irrepreensível, com a possível excepção dos míticos países nórdicos. Pelo que se fizermos a análise de Vital Moreira considerando 3 categorias:
"democracias puras": Suécia, Noruega, Finlândia, Venezuela (?), Bolívia (?)
"democracias assim-assim": ???
"ditaduras": Cuba, Coreia do Norte, Madeira, Gondomar
chegaremos a conclusões bastante diferentes. Quem ler o que Vital Moreira tem escrito sabe que tanto os EUA como Israel não pertencem à categoria das "democracias puras" pelo que não lhes podemos aplicar o nível de exigência que aplicariamos às democracias puras. Os EUA e Israel serão democracias assim-assim. Podemos assim tornar mais toleráveis as acções dos EUA e de Israel. Podemos até reescrever uma das frases de Vital Moreira desta forma:
Por outro lado, no caso das democracias puras, as guerras injustas e os crimes de guerra e crimes contra a humanidade são ainda mais intoleráveis do que no caso das democracias assim-assim, justamente porque põem em causa a dignidade e a legitimidade da própria democracia. É por isso que Guantánamo é mais admissível por ser da responsabilidade de uma democracia assim-assim como os EUA do que se fosse da responsabilidade de uma democracia pura como a Suécia ou a Noruega; é por isso que os métodos repressivos usados nos territórios ocupados e a destruição punitiva do Líbano são menos censuráveis quando são da responsabilidade de uma "democracia assim-assim" como Israel do que seriam se fossem da responsabilidade de uma "democracia pura" como a Suécia ou a Noruega.
Note-se no entanto que se a Suécia e a Noruega cometessem os mesmos actos que Israel e os EUA teriam que passar para a categoria de "democracias assim-assim" pelo que os seus actos deixariam de ser tão intoleráveis como seriam se esses países permancessem na categoria de democracias puras.
Em conclusão: o argumento de Vital Moreira, quando devidamento corrigido do problema da instabilidade das categorias utilizadas, tem como consequência que para um observador totalmente imparcial a tolerabilidade de um acto não depende do tipo de regime que o pratica. Algo que o senso comum já nos dizia há muito mas que agora fica demonstrado por uma análise lógica um pouco mais rigorosa.
Ver ainda o post de Luciano Amaral sobre este tema.