7.11.05

Posts Autríacos II

"Podemos lamentar-nos contra a injustiça quando uma sucessão de calamidades impende sobre uma família, enquanto uma outra prospera a um ritmo firme e sólido, quando um esforço meritório é frustrado por um acidente imprevisível, e particularmente se num universo de várias pessoas cujos esforços são idênticos, uns atingem brilhantemente o sucesso enquanto outros falham rotundamente. É certamente trágico ver o falhanço da maior parte dos esforços meritórios dos pais na educação dos seus filhos, dos jovens na criação das suas carreiras, de um cientista na exploração da sua ideia brilhante. Podemos protestar contra tão triste fado ou fatalidade, ainda que não saibamos a quem nos devemos queixar por isso, nem conheçamos a forma de prevenir e evitar este tipo de desapontamentos"
[Hayek, The Fatal Conceit: The Errors of Socialism, 1988]

O mesmo efeito que Hayek acima aponta para certos factos do quotidiano podem decorrer do normal funcionamento dos mercados. Estes muitas vezes produzem efeitos não desejados, que não nem justos nem injustos; são apenas moralmente arbitrários, pois não existe nenhuma entidade a que possamos recorrer ou responsabilizar. A noção de "Justiça Social" é, por esta razão, necessariamente vazia e sem sentido, porque, entre outros aspectos, "ninguém pode prevenir ou evitar que os rendimentos de cada um dependam, ainda que parcialmente, do acaso".

As doutrinas socialistas pecam, por isso, e desde logo, por recusarem aceitar que os padrões de distribuição são necessariamente contingentes, não havendo nisso qualquer juízo moral.

Muitos argumentos têm sido utilizados para controverter esta constatação que Hayek tão claramente apresenta. Um dos que tem tido mais acolhimento defende que a noção de "Justiça Social" se baseia sobretudo na ideia de que a sociedade pode, colectivamente, intervir, através de meios democráticos, no sentido de eliminar as inequidades associadas à distribuição, se for essa a sua opção, não estando tão centrada no facto de, como apontava Rawls, a lotaria natural ser aleatória ou, na linguagem de Hakek, ser moralmente arbitrária [cf. Judith Shklar, The Faces of Injustice, 1990, na linha de John Rawls e da sua Teoria da Justiça]. A inequidade da distribuição natural seria uma primeira ratio, um ponto de partida, mas não a essência da "Justiça Social", mais preocupada em justificar a distribuição igualitária e a eliminação das desigualdades do que propriamente em tentar perceber a origem das diferenças. Para Shklar, as intervenções não têm de se traduzir, necessariamente, em exaustivos planos económicos, podendo assumir a forma de modestos esforços para promover o acesso universal a certos bens considerados básicos (como saúde, a educação, o subsídio de desemprego, habitação social e o rendimento mínimo). Para Shklar, não depende dos indivíduos decidir como é que o mercado fixa as recompensas, mas já dependerá de todos nós decidir como é que são alocadas essas recompensas.

Para percebermos bem Hayek, e compreendermos a utilidade que o seu pensamento tem na busca das soluções aos problemas que o mundo hoje enfrenta, importa responder às seguintes interrogações: O que define a matriz de sucesso numa dada sociedade? Qual é o critério do sucesso? Quais os benefícios que existem para os indivíduos quando uma sociedade é bem sucedida?

Hayek enfatiza nos seus escritos com frequência que o progresso é a resultante de um processo de evolução, de acordo com o qual aquelas sociedades que são relativamente bem sucedidas tendem a favorecer as normas sociais que encorajam e promovem a adaptação à mudança e acompanham o crescimento da população. As próprias tradições morais são, para Hayek, mais o produto de uma evolução cultural e menos manifestações da razão humana.

Neste início de milénio, o homem começa a aperceber-se que, afinal, não é o último na árdua tarefa de desvendar a realidade e que, enfim, não foram escritas ainda as últimas páginas da História. São muitas as perplexidades que se nos colocam, numa sociedade dinâmica que, da soma das diversas interacções individuais, sistematicamente se reinventa. Hayek sempre se perguntou se faria sentido, sabidas que são as limitações do conhecimento humano, tentar ajuizar e apreciar a complexidade, a resultante deste processo dinâmico no seu todo, procurando definir, do ponto de vista moral, princípios de justiça que nos protejam contra a mudança, ou se antes devíamos simplesmente compreender que o processo evolutivo é moralmente arbitrário, simplesmente acompanhando-o. Não será esta tomada de consciência da finitude da razão humana e da sua incapacidade de interpretar a realidade no seu todo - e, portanto, a impossibilidade de modelar e regular todo o complexo social - o que tem faltado às sociedades europeias neste início de milénio?

Será possível viver sem risco e incerteza? Não. Valerá a pena estar sempre a tentar «explicar» a mudança, canalizando energias num esforço de a condicionar, procurando conformar a realidade de uma forma defensiva, desenhando castelos no ar? Obviamente, não.

O mundo globalizado em que vivemos actualmente é claramente hayekiano, ordena-se espontânea e rapidamente; está carregado de complexidades que o homem, face às suas limitações, não consegue explicar, não consegue antecipar e, consequentemente, não consegue modelar; parte da Europa assiste perplexa; ao negar que a realidade lhe escapa, escorregadia, entre os dedos, perde terreno. Portugal é um país pobre, que não tem nada a proteger, nada para conservar, para além da sua mediania; Portugal não tem meios para se isolar do resto do mundo. Países como Portugal beneficiariam se compreendessem que, nas sociedades modernas o mais importante, hoje, é libertar os cidadãos, permitir que os indivíduos sejam capazes de cooperar, competir e interagir, criando em seu redor «teias de progresso», em seu benefício próprio e, por isso, em benefício daqueles que o rodeiam.

Compreendo que o mundo de hoje tem riscos, é moralmente arbitrário, mas que, mais do que nunca, apresenta grandes desafios, pois recompensa, como jamais ocorreu na história da humanidade, os agentes da mudança.

Rodrigo Adão da Fonseca

Leituras recomendadas:

Hayek, "The Mirage of Social Justice", in Law, Legislation, and Liberty, Volume 2, 1978, Chicago, University of Chicago Press

Hayek, "The Fatal Conceit: The Errors of Socialism", in The Collected Works of F.A. Hayek. Volume 1, 1988, Chicago, University of Chicago Press.

Shklar, J., The Faces of Injustice. 1990, New Haven, Conn., Yale University Press.

Posts relacionados: Posts Austríacos I / OPTIMISMO E PESSIMISMO: ESQUERDA E DIREITA - ligeiro contributo de RAF / O que é um Esquerdista? / Sobre as concepções liberais e a natureza da Lei (revisto) /A propósito do Café Blasfémias: Democracia e Liberalismo