25.4.06

anatomia de uma mentalidade

Trinta e dois anos após um golpe de Estado que derrubou uma «ditadura de ferro» que, paradoxalmente, não deu um tiro em sua própria defesa, a mentalidade portuguesa continua rendida a banalidades de salão e de salinha, não ganhou consciência crítica e continua a engolir tudo quanto lhe põem à frente.
Assim, trinta e dois anos depois do 25 de Abril de 1974, afirmar que este golpe de Estado foi feito por gente de boa e de má fé, por gente que estava ao serviço de Portugal e por gente que estava ao serviço de interesses estrangeiros, por gente que serviu o País e por gente que se serviu do País, e dizer que o segundo grupo predominou desde esse dia de Abril até ao dia 25 de Novembro de 1975, que ia lançando o País na guerra civil, que entregou os territórios africanos aos representantes da URSS quando havia outras forças com quem lidar (e que foram vergonhosamente traídas pelas «autoridades» portuguesas), que promoveu nacionalizações vergonhosas, ocupações selvagens, que destruiu empresas, fez saneamentos persecutórios, ocupou jornais e rádios, tentou proibir a liberdade de imprensa e mandar os «fascistas» para o Campo Pequeno, é, hoje em dia, trinta e dois anos depois, crime de lesa-pátria e uma despudorada declaração de «fascismo».###

Diga-se, para que não restem dúvidas, que sempre entendi ter sido António Oliveira Salazar o grande responsável pela forma como foi feita a descolonização portuguesa. Devia ter percebido a tempo e horas que já não vivia no século XIX e que o Concerto das Nações acabara em 1918. Apesar de ter mantido uma política ultramarina que, é bom dizê-lo, vinha dos sectores mais radicais da I República, não teve grandeza suficiente para perceber a História. Como, também, se agarrou despudoradamente ao poder, e não teve dignidade pessoal para regressar à vida civil e deixar o governo antes da natureza e do tempo terem sido obrigados a cumprir a sua missão. Mas já não estou assim tão de acordo quanto às responsabilidades que cabem a Marcello Caetano e aos autores do 25 de Abril, que, note-se, ocorreu seis anos depois da morte política de Salazar. Afirmar, como é moda para a boa higiene das consciências, que o primeiro foi responsável pelo que sucedeu, é desconhecer por inteiro a história desse período tão recente e tão obscuro de Portugal (porque será?) que foram os menos de seis anos decorridos entre a queda do ditador e o dia que hoje se comemora. A descolonização não podia ter sido feita de outra maneira e com outra gente? Mas como, se as soluções encontradas, pelo menos para Angola e Moçambique, geraram, de imediato, guerras civis entre partidos que estavam implantados nesses países? Por que razão, então, entregar o poder, em todas as antigas colónias sem excepção, aos movimentos influenciados pela URSS? Não há aí responsáveis? Foi, também, culpa de Salazar e Caetano? Terá sido responsabilidade de Spínola por usar monocolo e ser vaidoso? Não o conheciam já os «capitães de Abril» quando se colaram à sua figura para legitimar o golpe? Será que sem Spínola estaríamos a comemorar no dia de hoje a efeméride? É certo que, para alguns responsáveis pelo que então aconteceu, Costa Gomes, esse patriota representante de Portugal no insuspeito Conselho Mundial para a Paz, servia melhor os seus interesses. Mas também ele não teve responsabilidades, nem culpa ou sombra de pecado.

É esta «história» que francamente gostaria de ver bem analisada e seriamente explicada. Como, também, não me importaria de ver melhor estudado o período marcelista, essa célebre «ditadura» e esse temível «ditador» que, repito, paradoxalmente não mandou um tiro em defesa do regime. Fossem, ainda hoje, fazer coisa parecida a esse ilustre democrata que é Fidel de Castro e teriam a devida resposta. E, se calhar, por falar em respostas, talvez consigamos perceber a razão dessa nossa amnésia histórica, se analisarmos os percursos de parte substancial da classe política da III República antes do 25 de Abril de 1974, principalmente daqueles que têm mais de sessenta anos. Um dia, quem sabe, talvez se possa fazer imparcialmente a história desse período, como a do que veio a seguir. Sem ressentimentos e sem paixões mas, também, sem pretender atirar areia aos olhos das pessoas. E, sobretudo, sem a proverbial mentalidade portuguesa de bajular quem está em cima e cuspir em quem está em baixo. Mesmo que sejam as mesmas pessoas e o tempo breve. Como sucedeu com Marcello Caetano e com o «bom povo português» no Estádio de Alvalade em 1 de Abril de 1974 e no Carmo vinte e quatro dias depois.