25.4.06

o 25 de abril, por quem o fez

Discurso do Presidente da República demissionário, General António de Spínola, no dia 30 de Setembro de 1974, ao Conselho de Estado e ao País:

«Senhores Conselheiros de Estado
Portugueses

A crescente deterioração do clima social, económico e político, ultimamente mais acentuada, tem constituído, para mim, motivo da mais profunda preocupação. Sobre as origens da situação a que chegámos me tenho debruçado num esforço de análise que sempre se orientou pela pureza dos princípios que enformaram o espírito do «25 de Abril». Esforço de análise a que me obrigaram a minha consciência de Português e a minha responsabilidade de Presidente da República, pois assumi perante o País o compromisso de responder pela restauração das liberdades cívicas e pela construção de uma democracia institucional autêntica; e nessa tarefa me empenhei com sinceridade inequívoca e férrea determinação.
È dessa análise e da posição que assumo com base nas conclusões alcançadas, que desejo informar o Conselho de Estado e o País, para que sobre elas se não teçam interpretações inexactas, nem se deturpe a honestidade das intenções que lhes presidiram.###
Começarei por afirmar que não é de hoje a minha adesão ao espírito do Movimento das Forças Armadas. Desde a nomeação para o cargo de Governador da Guiné que sempre expus frontalmente, primeiro sem publicidade, por dever de ética, e depois publicamente, a minha total oposição ao ideário e aos métodos do velho regime. E isso sem rodeios nem eufemismos, antes falando a rude linguagem da verdade que, como soldado e como combatente, jamais deixei de utilizar.
Estive com o Movimento desde a primeira hora, pelo que conheço perfeitamente o seu espírito e as suas intenções, a que aderi com uma sinceridade de que ninguém ousará duvidar. E são exactamente esse conhecimento essa identificação que me conferem irrecusável autoridade moral para concluir que a origem da situação a que chegámos reside na desvirtuação do ideário do Movimento. Encontro-me perante a evidência de o Programa do Movimento das Forças Armadas estar a evoluir no quadro de uma acção política tendente, afinal, à sua própria neutralização, em clima de inversão de uma moral cívica à margem da qual se torna impossível a prática da Democracia e da Liberdade. Inversão em que, por fidelidade ao espírito do Movimento e pelo respeito aos compromissos que assumi ao aceitar este cargo, não devo nem posso participar. Dois ou três pontos bastarão para o justificar.
Esteve no espírito do Movimento das Forças Armadas definir, concreta e objectivamente, uma política ultramarina que conduzisse à paz entre os portugueses de todas as raças e credos, objectivo que o anterior regime se revelou totalmente incapaz de atingir. Essa política definimo-la nós, ao estabelecer inequivocamente e com geral aceitação os princípios democráticos do processo de descolonização que o Mundo e os homens de sã consciência reconheceram válidos. Toda essa política e o consequente processo de descolonização foram deturpados, numa intenção deliberada de os substituir por medidas antidemocráticas e lesivas dos reais interesses das populações africanas.
Esteve igualmente no espírito do Movimento das Forças Armadas promover a harmonia entre todos os credos políticos; mas essa harmonia jamais será possível quando, por um lado, os chefes declarados de alguns partidos políticos fazem apelo ao bom senso e, por outro lado, os respectivos grupos de acção enveredam pela via da coacção psicológica através dos grandes meios de informação, e até da violência, em flagrante negação da liberdade e a pretexto da insinuação caluniosa logo lançada sobre os seus oponentes.
Esteve no espírito do Movimento das Forças Armadas reservar à Nação, através das suas legítimas instituições democráticas, a definição de um perfil da sociedade que os portugueses desejam construir. Mas esse princípio encontra-se claramente ameaçado, senão já de todo comprometido, pela sistemática cedência perante a realização larvar das reformas de fundo, que dia a dia se vão operando face ao clima vigente de ausência de lei. Daí resulta que, no fim deste longo período de anomia, a Nação Portuguesa se encontrará perante situações irreversíveis, fortemente limitativas do estatuto constitucional que vier a ser escolhido em consenso popular. Tais situações estão desse modo retirando ao povo a sua real capacidade para o exercício da soberania.
O Programa do Movimento previa também que a substituição do regime deposto teria de processar-se sem convulsões internas que afectassem a paz, o progresso e o bem-estar do Povo Português. A situação é, infelizmente, bem diferente. Forjam-se reivindicações, postas nas mãos dos trabalhadores por burgueses frustrados do velho regime, subitamente titulados também de trabalhadores. A paz, o progresso e o bem-estar da Nação são comprometidos pela crise económica para que caminhamos aceleradamente, pelo desemprego, pela inflação incontrolada, pela quebra do comércio, pela retracção dos investimentos e pela ineficácia do poder central. Isto porque quanto se vem fazendo à sombra do Programa do Movimento das Forças Armadas, pouco menos é do que o assalto aos meios de produção; é a reivindicação com base em decisões tomadas a níveis sem competência nem legitimidade para o fazer; enfim, é a inversão das estruturas, à margem da sanção democrática do Povo. Anulam-se as leis do velho regime antes que as novas regulem a vida política, social e económica do País e mesmo algumas das leis já publicadas são impunemente escarnecidas. Neste clima generalizado de anarquia, em que cada um dita a sua própria lei, a crise e o caos são inevitáveis, em flagrante contradição com os propósitos do Movimento. Por várias vezes chamei a atenção do País para as consequências a que tal estado de coisas acabaria por conduzir; e após profunda e demorada reflexão tomei a nítida consciência de não estarmos a caminhar para o País novo que os portugueses desejam construir.
Concluí assim ser inviável a construção da Democracia sobre este assalto sistemático aos alicerces das estruturas e das instituições por grupos políticos cuja essência ideológica, em flagrante desvirtuação do espírito do «25 de Abri». Encontro-me, portanto, perante a impossibilidade de execução fiel do Programa do Movimento das Forças Armadas. O meu sentido de lealdade inibe-me de trair o Povo a que pertenço e para o qual, sob a bandeira de uma falsa liberdade, se estão preparando novas formas de escravidão.
Tenho dedicado toda a minha vida ao serviço da Pátria e não desejo que fique a pesar-me na consciência haver alguma vez traído os meus concidadãos. Nestas condições, e perante a total impossibilidade de, no actual clima, se construir uma democracia autêntica ao serviço da paz e do progresso do País, renuncio ao cargo de Presidente da República.
Ao dirigir ao Conselho de Estado e ao Povo Português esta mensagem de renúncia, desejo reafirmar a minha indestrutível vinculação aos ideais da liberdade e da democracia e a minha inabalável obediência a princípios básicos da ética militar, que me inibe de participar em projectadas estruturas revolucionárias. E no momento em que, uma vez mais, o País está na iminência de ver esses ideiais comprometidos, lanço o meu último apelo para que cada português conserve a necessária serenidade de espírito, se mantenha em paz, confie na força do voto secreto, a grande arma democrática dos homens ordeiros e livres, e jamais consinta qua a sua consciência seja violada.
Termino formulando os mais ardentes votos para que a causa da liberdade e da democracia triunfe de facto sobre quantos dela se vêm apenas servindo. E levo comigo o conforto da certeza de tudo haver feito para manter intacto o espírito do «25 de Abril» do qual me constituí intransigente defensor e garante.»