24.4.06

O Expresso do Oriente (*)

(*) Artigo publicado hoje na revista Dia D, suplemento do jornal Público, ao lado do outro artigo com laivos blasfemos, "A Constituição do Nosso Atraso", do Insurgente André Azevedo Alves.

Num estudo recentemente citado pelo Ministro das Obras Públicas, conclui-se que o desígnio TGV estimulará o desgastado PIB nacional em 1,7%, nos anos da construção. Este crescimento atribuível ao projecto TGV é tão certo e previsível como o empobrecimento de Portugal causado pelo mesmo TGV. Se as famílias estimassem rendimentos como se faz no estado, quem se endividasse para comprar um Ferrari aumentaria o PIB familiar no valor exacto de um Ferrari. Se este é o critério relevante, construam-se 3 TGV. Estima-se um impacto no PIB de 5,1%.

O país empobrece porque troca 10.000 milhões de euros por comboios, linhas, acessibilidades e estações que, no conjunto, terão um valor muito inferior ao investido ou até um valor negativo. Não é preciso ser visionário para adivinhar que a exploração do TGV será sempre deficitária. Os contribuintes portugueses que vão suportar a mais grossa fatia do investimento serão convocados no futuro para cobrir prejuízos ou disfarçá-los, subsidiando a exploração.###

Para o governo, parece não existir correlação entre investimento e criação de riqueza. Apesar de enredado em desequilíbrios financeiros sem fim à vista, ?investe? porque os vizinhos já têm, porque acredita nas virtudes do keynesianismo ou porque não podemos ficar desligados das redes europeias de alta velocidade, como se existisse um enorme mercado expectante por ligações de TGV para Bruxelas ou Cracóvia. Investe-se, também, para exibir a jóia aos vizinhos, tal e qual a família endividada que passearia no Ferrari nas tardes de Sábado. Num caso, menos bifes, mais despesas e mais dívidas para pagar. No outro, menos 10.000 milhões agora e menos outros milhões mais tarde.

Se o governo pretende zelar pelo bem-estar dos portugueses, facilitar-lhes a mobilidade e criar riqueza, sugere-se a liberalização do espaço aéreo. Nesta época de low-costs, em que o preço de uma viagem aérea para Londres já não anda muito longe do custo real de um passeio sobre carris entre Lisboa e o Entroncamento, não faltarão empresas determinadas a operar concorrencialmente nos mercados Lisboa-Porto ou Lisboa-Madrid, arrastando os preços das viagens aéreas para patamares bem inferiores aos que resultam dos cenários mais absurdamente optimistas e ultra-subsidiados de qualquer projecto TGV.

Se argumentos falaciosos têm servido para justificar o nosso empobrecimento futuro, os que se apresentam em defesa da pátria lusa contra a invasão chinesa não ficam nada atrás. O combate aos têxteis do oriente é pedido para protecção do modelo social do ocidente e dos postos de trabalho das empresas da casa que não conseguem competir com as suas congéneres asiáticas.
Portugal ainda tem quase tudo o que é necessário para que a indústria têxtil seja próspera e radiosa. Falta-nos apenas um recurso indispensável. Operários que trabalhem ao custo dos asiáticos. Ainda bem que já somos suficientemente ricos para renegar tal retrocesso. Admitindo a possibilidade de fechar portas e, em nome da manutenção do emprego e da protecção do estado social, continuar a alimentar artificialmente a nossa depauperada indústria têxtil, resta inventar uma solução para sermos mais ricos que os chineses produzindo exactamente o mesmo que eles.

Infelizmente, ao ritmo recente das evoluções salariais relativas de Portugal e da China, em breve voltarmos a ser competitivos. Talvez numa geração, apenas. E nesse dia não muito distante, celebraremos a nossa reconquistada competitividade, enviando contentores carregados de t-shirts para a China, pelas sub-utilizadas linhas de TGV.

Convém ter muito cuidado com a França, a Alemanha ou a Itália. Prometem ser os mais perigosos competidores, na próxima geração.###